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Machado de Assis: autor do século XXI?

Não é raro ouvir dizer que Machado de Assis, mais que um autor do século XIX, é um autor do século XX, de tal modo sua obra mostrou afinidades com a produção modernista, em especial a da primeira metade do século passado. Acredito que os precursores dessa linha de pensamento, e de certa forma os que a consolidaram, lançando a base para digressões futuras, foram Antonio Candido, Haroldo de Campos e João Alexandre Barbosa.
No ano de 1968, no já bastante citado "Esquema de Machado de Assis", Antonio Candido afirma que podemos encontrar na ficção machadiana, sobretudo entre 1880 e 1900, "disfarçados por curiosos traços arcaizantes, alguns dos temas que seriam característicos da ficção do século XX." (CANDIDO, 1995, p. 20)
A tese de Candido é a de que Machado teria sido reconhecido em vida como grande escritor não pelo que pudesse de fato interessar em sua obra, do ponto-de-vista de uma crítica literária mais amadurecida, e sim por algo que seria apenas uma tintura de superfície: sua erudição, sua elegância, seu estilo vazado numa linguagem castiça. Apenas no decorrer do século XX, em especial depois dos anos 40, segundo Candido, a crítica soube ler Machado como algo além de um escritor bem-comportado, de uma ironia fina mas sem maiores conseqüências para a problematização do status quo de uma casta intelectual movida pela retórica vazia e pela troca de gentilezas nos jornais e nos salões.
Para Antonio Candido, a obra machadiana apresentaria alguns traços que a ligariam a uma estética literária moderna. O primeiro deles seria o do tratamento da questão da identidade, que, em Machado, resulta na relativização dos limites entre razão e loucura. Haveria ainda o problema da relação entre o fato real e o fato imaginado - que irá nortear a ficção de Proust, por exemplo, e que ambos irão tratar a partir do tema do ciúme -, relação esta da qual resultaria uma questão ética, norteadora do existencialismo de Sartre e Camus: que sentido tem o ato?
Junto a esta questão viria outra, decorrente dela, que Candido define como o problema da aspiração à perfeição, à obra una, completa. Tal problema seria o fio condutor de diversos contos de Machado, em especial "Um homem célebre." Como afirma o crítico paulista, a confusão entre fantasia e a realidade, a constatação de que a opinião alheia é o que talvez haja de mais autêntico em nós, a impossibilidade de definir com exatidão o que difere o justo do injusto, o certo do errado, tudo isso leva, em Machado, a uma relativização de conceitos que dá lugar ao sentimento do absurdo, base da obra de Gide e de Kafka.
Por fim, Candido aponta um outro tema, diferente destes e que, assumidamente, o atrai mais que os outros: a reificação das relações sociais. Ou, para usar de suas próprias palavras: "a transformação do homem em objeto do homem" (CANDIDO, 1995, p. 34), que está presente em seus romances e contos, como "A causa secreta", por exemplo.
E conclui, reiterando sua proposta de leitura:
"não procuremos na sua obra uma coleção de apólogos nem uma galeria de tipos singulares. Procuremos sobretudo as situações ficcionais que ele inventou. Tanto aquelas onde os destinos e os acontecimentos se organizam segundo uma espécie de encantamento gratuito, quanto as outras, ricas de significado em sua aparente simplicidade, manifestando, com uma enganadora neutralidade de tom, os conflitos essenciais do homem consigo mesmo, com os outros homens, com as classes e os grupos." 1
No início dos anos 1980, e menos preocupado com temas, ou "situações ficcionais", do que com um modo específico de lidar com a economia da linguagem, temos o ensaio de Haroldo de Campos, "Arte Pobre, Tempo de Pobreza, Poesia Menos".
Aqui, Haroldo estabelece que o "procedimento menos" (que ele irá definir ao longo do texto) teria uma data para o registro histórico de sua discussão: 1897, quando Sílvio Romero escreve sua crítica a Machado:
"O estilo de Machado de Assis, sem ter grande originalidade, sem ser notado por um forte cunho pessoal, é a fotografia exata de seu espírito, de sua índole psicológica indecisa. Correto e maneiroso, não é vivaz, nem rútilo, nem grandioso, nem eloqüente. É plácido e igual, uniforme e compassado. Sente-se que o autor não dispõe profusamente, espontaneamente do vocabulário e da frase. Vê-se que ele apalpa e tropeça, que sofre de uma perturbação qualquer nos órgãos da palavra. Sente-se o esforço, a luta. 'Ele gagueja no estilo, na palavra escrita, como fazem outros na palavra falada', disse-me uma vez não sei que desabusado num momento de expansão, sem reparar talvez que dava-me destarte uma verdadeira e admirável notação crítica. Realmente, Machado de Assis repisa, repete, torce, retorce tanto suas idéias e as palavras que as vestem, que nos deixa a impressão dum perfeito tartamudear. Esse vezo, esse sestro, para muito espírito subserviente tomado por uma coisa conscienciosamente praticada, elevado a uma manifestação de graça e humor, é apenas, repito, o resultado de uma lacuna do romancista nos órgãos da palavra." 2
O texto de Silvio Romero estaria apontando, segundo Haroldo de Campos, para determinado paradigma: a valorização do estilo "abundante, corrente, colorido, marchetado" (adjetivos usados por Romero para exaltar a escrita de Rui Barbosa). Paradigma, este, que teria guiado grande parte de nossa cultura literária, em detrimento de um estilo mais exato, em que o excesso é tido não como aliado mas como declarado inimigo.
Ainda segundo Haroldo, o intencional tartamudear do estilo machadiano é uma estratégia voluntária de estabelecer o dialogismo bakthiniano, na medida em que diz e desdiz no mesmo passo, instaurando o tenso diálogo entre vozes, marca de seus contos e romances, como, por exemplo, Dom Casmurro:
"Há quem se contente em buscar em Dom Casmurro um raconto de adultério ou de suspeitas de adultério (...) Quem se lembrar que adulter vem de 'ad + alter', e pode significar também 'alterado', 'falsificado', 'miscigenado', 'enxertado' (formas de estranhamento do mesmo no outro), quem sabe concordará comigo que a personagem principal de Dom Casmurro (e, por sinal, a maior criação machadiana para a estética de nosso romance) não é Capitolina/Capitu, mas o capítulo: esse capítulo gaguejante, antecipador e antecipado, interrompido, suspenso, remorado, tão metonimicamente ressaltado pelo velho Machado em sua lógica da parte pelo todo, do efeito pela causa, como os olhos e os braços de Capitu." 3
O estilo machadiano - feito de "lacunas e reiterações, de elipse e redundância, de baixa temperatura vocabular e alta temperatura informacional estética" (CAMPOS, 1992, p. 222) - andaria na contramão de nossa tradição literária, interessada antes numa "poesia mais". A esta, Haroldo contrapõe a "poesia menos", que teria tido em Machado seu primeiro representante, num fio que conduz em seguida a Oswald de Andrade e continua com Graciliano, Drummond e João Cabral, desembocando em Augusto de Campos e na poesia concreta.
Ao falar, explicitamente, de uma "certa linha rastreável de evolução", ao colocar Machado de Assis entre alguns dos considerados cânones modernistas (cujo elo final seria a vanguarda concretista), Haroldo reitera, sob novo viés, a tese de Candido. Alçando o escritor do ambiente morno do final do século XIX - tão bem representado pelo próprio Silvio Romero - à festa da linguagem proposta e levada a cabo por diferentes gerações modernistas, o crítico reforça o coro dos que vêem Machado como autor do século XX.
Também pensando a partir de um pressuposto, a meu ver, questionável, o de "linha evolutiva", João Alexandre Barbosa, em "A modernidade no romance", elabora análise semelhante.
No início dos anos 1980, convidado a fazer, em função das comemorações de sessenta anos da Semana de 22, um balanço do que teria sido o romance brasileiro no século XX, João Alexandre alerta, logo de início, para o fato de que é necessário diferenciar moderno e modernismo:
"se o primeiro termo indicia um fenômeno de bases universais, apontando para tudo o que significou problematização de valores literários no amplo movimento das idéias pós-românticas, o segundo termo, confundindo-se, em alguns casos, com a própria idéia de vanguarda, já aponta para a retomada, num nível de intervenção cultural, dos desdobramentos do primeiro." 4
Moderno, portanto, seria algo mais amplo, com desdobramentos nas diversas camadas da cultura, enquanto modernismo seria um fragmento desse todo, focado especificamente no campo estético. Há no modernismo, obviamente, algo do moderno, e este algo seria, segundo o crítico, a existência de certa insegurança, certa instabilidade no modo de articulação entre literatura e realidade. Põe-se em xeque a segurança com que românticos, realistas e naturalistas tratavam dessa articulação e instaura-se a desconfiança em relação ao que parecia certo.
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Modernistas e modernos não são, portanto, necessariamente a mesma coisa:
"são Modernos aqueles Modernistas que criaram as condições indispensáveis para uma reflexão acerca das relações referidas entre realidade e representação, abrindo o espaço para uma outra e fundamental passagem, qual seja, a da reflexão a propósito do próprio sistema articulatório em que se fundam as duas noções de base." 5
Para João Alexandre, seria chegado o momento de separar o joio do trigo. Estabelecidos seus fundamentos, o crítico parte para a resposta à seguinte pergunta: quem, dentre os modernistas brasileiros, foi verdadeiramente moderno?
O primeiro nome da lista é, como era de se esperar, Machado de Assis. Ao propor, pela ficção, uma reflexão acerca das próprias potencialidades da narrativa, no seu confronto com o real, ao operar a delicada articulação entre metalinguagem e história, ao problematizar, por fim, os próprios estatutos que regeriam ficção e realidade, Machado teria sido, segundo João Alexandre, nosso primeiro autor modernista e, ao mesmo tempo, nosso primeiro autor moderno.
Fazendo par, embora talvez sem se dar conta disso, do que já afirmara Antonio Candido no final dos anos 60, João Alexandre arremata:
"um aspecto pouco tratado pelos críticos que estudaram a obra machadiana: o modo pelo qual a absorção de seus textos ocorreu antes pelo ângulo de uma suposta articulação entre o escritor e seu tempo - daí a glória em vida, o senso de pudor acadêmico, a asfixiante classificação moralista etc. - do que pela via menos acessível da desarticulação, a qual responde por sua intensa modernidade." 6
Assim como Haroldo fizera, em seu ensaio, uma listagem de autores que, cultivadores da "poesia menos", fariam parte da mesma "família", João Alexandre Barbosa traça também sua linha evolutiva, agora sob novo parâmetro: a problematização das relações entre realidade e representação. Em ambos, o nome primeiro é Machado de Assis. Na lista de João Alexandre, que inclui apenas romancistas - como indica o título do ensaio -, a Machado se seguem, nessa ordem: Oswald de Andrade, Mário de Andrade, Graciliano Ramos, Clarice Lispector (que o crítico coloca em nível inferior aos demais) e Guimarães Rosa.
Não há dúvida de que as leituras empreendidas por Antonio Candido, Haroldo de Campos e João Alexandre Barbosa são pertinentes. Há, no entanto, uma outra possibilidade de situar a obra de Machado no plano geral de nossa tradição literária. E esta seria pensar em Machado não como autor do século XX, mas do XXI.
E aí caberia um breve esclarecimento. Sem me ater ao rigor cronológico, acredito que o século XXI no Brasil - pelo menos no campo da prosa de ficção - tem início na década de 80, no período pós-ditadura, e se estende até nossos dias. E se o leitor me permite uma tosca tentativa de estabelecer algo parecido com uma origem para a ficção brasileira pós-moderna, mesmo correndo o risco do paradoxo - fazer uma leitura moderna da pós-modernidade, buscando estabelecer datas de origem etc. -, diria que esta tem início com a publicação, no início dos anos 80, de duas obras capitais: Em liberdade, de Silviano Santiago, e O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro, de Sérgio Sant'Anna.
Daí até nossos dias, vivemos já o século XXI, não pelo abandono das diretrizes que formaram nossa ficção no século XX, mas por sua rearticulação, em bases mais condizentes com uma nova configuração social, econômica e política, que já não se estrutura mais a partir das conhecidas dicotomias que nos acompanharam desde, pelo menos, o romantismo.
É nesse sentido que compreendo Machado como autor deste século, e não do XIX ou do XX.
No ensaio "Fechado para balanço", - que é, na verdade, um comentário ao texto de João Alexandre -, Silviano Santiago evita a concepção linear de história (da literatura inclusive) e parte para uma pergunta: não poderia o pós se alimentar do pré?
O texto de Silviano é, de certa forma, dirigido aos representantes das novas gerações de ficcionistas, que começavam a publicar justamente no início dos anos 80, quando o ensaio foi escrito (mesma época, aliás, em que vieram a público pela primeira vez os ensaios citados de Haroldo e João Alexandre), e se pauta pela tese de que autores considerados pré-modernistas, como Euclides e Lima Barreto, estariam, na verdade, mais próximos do que se produz no final do século XX do que o que se escreveu no modernismo de 22 e 30, e poderiam servir de referência aos novos escritores, que, assim, ficariam livres do modelo de transgressão proposto pelos modernistas, podendo partir para novas e mais arejadas trilhas.
Acredito que se possa continuar seguindo por esse caminho, buscando ver como a obra de Machado, embora possa ser lida numa aproximação com os cânones modernistas, está mais afinada com o que veio nas décadas de 80-90 e nos primeiros anos do século XXI.
Vejamos, a título de exemplo, o caso do conto (ou novela) "O alienista". Normalmente se diz que se trata, este conto, de uma paródia do discurso cientificista da época, de base positivista. Acredito esta seja uma leitura redutora. A paródia, como recurso estilístico, opera a partir de uma base maniqueísta (a não ser que a entendamos na concepção de Linda Hutcheon, que, a meu ver, se confunde com o que chamamos de pastiche). Na paródia, encena-se, pela literatura, o embate entre o bem e o mal, personificados nas figuras do novo e do antigo, que travam mortal batalha, vencida sempre pelo mocinho.
Daí o apreço que as vanguardas literárias tiveram pela paródia (vide, obviamente, a obra poética de Oswald). A paródia só existe quando há um adversário definido, e quando há, da parte do autor, a clara intenção de combate. Não digo que seja impertinente ver tal intenção em "O alienista", mas creio que o conto parte por veredas tortuosas, provocando transgressões um pouco mais sutis. O que move o estilo machadiano não é o maniqueísmo, embora ele se apresente numa leitura mais imediata, justamente para ser desmontado depois. E se não há maniqueísmo, não há paródia.
Pensemos, ainda com relação a "O alienista", nas teorias de Simão Bacamarte sobre a loucura. Disposto a estabelecer definitivamente os limites da razão e da loucura, Bacamarte elabora sua primeira teoria: a razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades.
Quando, porém, percebe que já internou na Casa Verde praticamente toda a população da pequena Itaguaí, decide mudar sua teoria, que agora é formulada da seguinte maneira: a razão é o desequilíbrio de todas as faculdades.
Caso se leia o conto como uma paródia, a interpretação parece bastante clara: Bacamarte, o suposto alienista, é, na verdade, o grande alienado. Afinal, o que se pode dizer de alguém que simplesmente muda de lado e interna a si próprio, apenas para experimentar uma nova teoria?
O que me parece equivocado, ou pelo menos apressado, nessa leitura, é que Bacamarte não tem uma nova teoria. Ele não muda de teoria. Ou, se muda, não muda o principal, quer dizer, não muda o princípio que estaria subjacente a estas supostamente duas teorias.
Quando afirma que a sanidade é o perfeito equilíbrio das faculdades mentais, o médico age movido por uma premissa: a loucura é uma exceção, e não a regra. Quando percebe que internou quase todos os habitantes de Itaguaí, ele tem duas opções: ou mudar a teoria, ou mudar de premissa. Bacamarte, como sabemos, opta pela primeira.
Se de fato quisesse mudar de premissa, ele diria: a loucura, afinal, é a regra. Somos todos loucos, esta é a verdade, ele diria. Tanto que internei quase todo mundo, continuaria o discurso desse suposto Bacamarte, justamente porque ninguém - nem mesmo eu, que errei no meu método, ou na minha premissa -, ninguém é completamente são. Somos todos loucos, mais ou menos conforme as circunstâncias, e as diferenças entre os indivíduos está no modo como cada qual lida com sua própria loucura, concluiria ele.
Mas não. O que ele reafirma é sua equivocada premissa: a loucura como exceção. E, para que a premissa não se perca, ele reverte a teoria: loucos são os ajustados mentais. E se interna ele próprio na Casa Verde, movido apenas por aquilo que eu diria ser seu lema, se ele tivesse um lema: viva a maioria! O que vale dizer: abaixo a diferença!
A premissa de Bacamarte é bastante clara: a loucura é um desvio, portanto os loucos têm que ser necessariamente minoria. Ora, a loucura, sabemos, nada mais é do que o espaço da diferença levado a seus limites. Na loucura, os opostos se cruzam e nesse cruzamento deixam de existir enquanto opostos. Não há propriamente oposição no centro da loucura, mas polifonia, caos de vozes diferentes. Ao ridicularizar o método de Bacamarte, Machado aponta para o outro lado: a loucura não é minoria. A loucura, em menor ou menor grau, é a regra. A diferença, portanto, e não o consenso, é a regra. A suposta razão apenas tentaria, de forma ineficaz, apagar as chamas da diferença.
Por isso o estilo de Machado surge tão forte em "O alienista", como surge, obviamente, em Dom Casmurro. Capitu, talvez o signo mais evidente da ambigüidade em Machado, precisa ser revivida e novamente morta pela memória de Bentinho para que a diferença não sobreviva e, desse modo, não o ameace. Embora mais sutil, Bentinho repete Bacamarte. Ambos sucumbem à força da ambigüidade. Ambos sucumbem à força da diferença.
O possível alvo de Machado, portanto, nesse conto, não seria o positivismo, o cientificismo, o naturalismo e outros "ismos", mas certa postura, sem dúvida autoritária, da exclusão. A história de Simão Bacamarte não seria, então, o reverso do pensamento positivista, como o negativo de uma foto, mas justamente a sua problematização. Não se trata simplesmente de paródia, mas de um investimento naquilo que, a meu ver, é talvez a grande marca de nossa ficção no século XXI (relembre-se: os últimos vinte e cinco anos): o elogio da diferença.
"O alienista" não se propõe como paródia. E se não seria correto dizer que se trata exatamente de um pastiche do discurso positivista - e de fato não é -, podemos pelo menos afirmar que dele se aproxima, na medida em que não bate de frente com seu adversário mas com ele interage criticamente, em tensão, em conflito. Algo como um "enfrentamento lateral" (investindo aqui na ambigüidade da expressão)
Diria, portanto, que Machado opera certo tipo de ultrapassagem, de transgressão, que se mostra mais próxima do que temos visto na pós-modernidade do que nos enfrentamentos levados a cabo pelo modernismo, que, no caso, mesmo parecendo redundante, eu chamaria de "enfrentamentos frontais".
Entre "frontais" e "laterais", a diferença me parece óbvia. Se, no primeiro caso, opta-se por uma estratégia de choque, no segundo o que vale é o convívio, tenso que seja, entre as diferentes formas de se escrever ficção. E é aí que Machado se encontra. A crítica que subjaz em "O alienista" não é exatamente ao grande inimigo: o discurso cientificista, que se acha capaz de desvelar os meandros da loucura, mas ao discurso totalitário - seja ele de que século for -, que se lança ao apagamento das diferenças, buscando encontrar o padrão, a norma que regeria o comportamento humano.
"O alienista" estaria, a meu ver, no campo de certa reescritura em aberto, ambígua, diferente da reescritura proposta pela paródia, que não permite o meio-termo. Trata-se quem sabe de algo sem nome, texto de múltiplas entradas e quem sabe nenhuma saída, como, para usar uma imagem cara à pós-modernidade, um labirinto borgiano.
E haveria, a propósito, algo mais borgiano do que a moldura ficcional do conto de Machado? É por demais conhecida, mas vale citar a primeira frase do conto: "As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos etc." (MACHADO, 1995, p.20). A diluição das fronteiras entre realidade e ficção, operada pelo fato de o narrador se referir à sua suposta fonte - os cronistas, a história oficial - aponta já para o jogo tão caro a Borges, que se reforça, em Machado, pelo uso deste "dizem", que, por sua vez, relativiza o relato, posto então, desde o seu início, sob suspeita.
É por esse apego ao diálogo entre contrários que o estilo de Machado se aproxima do que Haroldo de Campos chama, noutro contexto, de "pós-utópico". Embora respeite a opinião de que Machado tem mais a ver com a modernidade do século XX do que com o chamado realismo/naturalismo do século XIX, acredito que a equação seja outra. Machado não pode ser confundido com os modernos, que se empenharam numa luta entre opostos: a novidade versus a tradição. Mário, Oswald, e mesmos os romancistas do nordeste, eram modernos. Machado não. A idéia de luta, de combate, seja no campo estético ou ideológico, não combina com um estilo marcado pelo exercício sinuoso da convivência dos opostos, sempre, repito, em tensão.
Há outros aspectos da obra machadiana que a aproximam do estilo pós-moderno. Um desses aspectos é justamente o que move o conto "O alienista", e se trata do modo um tanto quanto desconfiado com que se observa o crescimento avassalador do pensamento cientificista.
Em artigo citado, Silviano Santiago diz o mesmo com relação a "Os sertões", no qual o crítico percebe traços da pós-modernidade:
"No caso de Euclides da Cunha, avulta a sua postura rítmico-reflexiva num momento crucial da História do Brasil, que se deu com a complexidade que apresenta o momento presente brasileiro para o jovem intelectual que começa a desconfiar dos percalços a que pode levar o progresso (...) A coragem de Euclides é dupla. Primeiro, política (...) Segundo, intelectual, porque coloca em questão a segurança e a certeza dos esquemas de pensamento, da sua época que, enciclopedista que era, possuía de maneira inequívoca. Não colocá-las em questão teria sido a sua forma de buscar o poder pelo saber, como tantos dos seus e dos nossos contemporâneos [e como Simão Bacamarte, eu diria, complementando Silviano]. 7
E conclui Silviano, fazendo a ponte entre Euclides e os ficcionistas atuais:
"O testemunho ficcional que o recente romance brasileiro está dando e pode continuar a dar é o de oferecer um olhar desconfiado aos grandes sistemas hermenêuticos do saber, percebendo neles o ranço de um intelectual autoritário, tão autoritário quanto as forças que permanecem inquestionáveis no poder." 8
A propósito, em O pós-moderno explicado às crianças, em que Lyotard retoma e realinha alguns conceitos formulados no seu A condição pós-moderna, lemos:
"podemos observar e estabelecer uma espécie de declínio na confiança que os Ocidentais dos últimos séculos punham no princípio do progresso geral da humanidade. Esta ideia de um progresso possível, provável ou necessário, enraizava-se na certeza de que o desenvolvimento das artes, da tecnologia, do crescimento e das liberdades seria proveitoso à humanidade no seu conjunto (...) Depois destes dois últimos séculos, tornámo-nos mais atentos aos signos que indicam um movimento contrário. Nem o liberalismo, económico ou político, nem os diversos marxismos saem destes dois séculos sangrentos sem incorrerem na acusação de crime contra a humanidade." 9
Já no seu "Palimpsesto de Itaguaí", Luiz Costa Lima apontava para o fato de que há, em "O alienista", sob o pano de fundo da temática da loucura, uma denúncia das articulações entre ciência e poder, que move, em vários momentos da narrativa, os passos de Simão Bacamarte: "o tema central de 'O alienista' - que é afinal a loucura? - não é apreensível sem se compreenda a articulação estabelecida entre três variáveis: ciência, linguagem e poder." (LIMA, 1991, p. 261)
Dessa forma, "O alienista" - como também "Os sertões", a partir de outra estratégia, apontada com precisão por Silviano Santiago - contribui para a formação deste olhar desconfiado lançado sobre o avanço da ciência, o que de certa forma o liga a uma prática que se pode observar em grande parte da produção ficcional brasileira dos últimos vinte e cinco anos.
Ao contrário do que ocorria, por exemplo, entre os modernistas da Semana - veja-se, apenas a título de exemplo, o encantamento de Oswald com o progresso de São Paulo -, a ficção pós-moderna vê com cuidado redobrado o discurso cientificista, no qual já não aposta e com relação ao qual não nutre nem um pouco da euforia modernista das primeiras décadas do século XX. Nesse sentido, a obra de Machado serviria mais aos propósitos pós-modernos do que propriamente aos modernos, deles se distanciando na medida em que problematiza, de forma irônica e incisiva, as relações entre ciência, linguagem e poder (para usar os termos apontados por Costa Lima).
Outro traço marcante da obra de Machado, e que também se pode presenciar em "O alienista", é a capacidade de lidar com dois estratos de leitura. É possível ler o conto como apenas uma história divertida, bem contada, do tipo que se lê e se esquece em seguida, um produto de puro entretenimento, portanto. Por outro lado, o conto resiste a uma análise mais aprofundada, como tantas que se fizeram e se fazem, sob a ótica de alguns de nossos melhores críticos.
Este duplo alcance de leitura é outro fato que afasta Machado dos modernistas - sobretudo os da primeira fase - e o aproxima da pós-modernidade.
Noutra ocasião, tratando dos possíveis deslocamentos operados na pós-modernidade, discorri brevemente sobre o assunto e retomo aqui as observações feitas à época, para tornar mais claro o raciocínio:
"Trata-se da diferença entre o modo como os modernistas e a vanguarda dos anos 50 lidavam com os meios de comunicação de massa e a maneira como a literatura atual se relaciona com esses mesmos meios. Tanto os modernos quanto os contemporâneos empreenderam o diálogo com a mídia, mas há diferenças.
Os primeiros viram-se fascinados com a potencialidade estética das novas linguagens, sobretudo a do cinema, no início do século, e a da publicidade, na década de 50, mas, ao mesmo tempo, criticavam a massificação decorrente dessas linguagens. A obra dos concretistas, sobretudo, demonstra a preocupação em deixar claro que o interesse pelo discurso publicitário é de natureza estética, acompanhado de uma firme discordância ideológica. (...)
Situação semelhante já podia ser observada em Oswald de Andrade, nos anos 20. Se é marcante o discurso cinematográfico na obra de Oswald, através do corte, da montagem e da multiplicidade do olhar, não está nos seus planos atingir um público tão abrangente quanto o do cinema. Ao contrário, faz parte do ideário dos modernistas e concretistas, como, de resto, de toda vanguarda, certo desprezo à aceitação da obra de arte pelo grande público. Se vende, não é bom - parece ser o lema. O fascínio pela linguagem rápida, fragmentada, e a descoberta da imagem como recurso estético a ser mesclado à palavra na construção poética não vem atrelado, portanto, ao desejo de atingir um público mais vasto." 10
Ao investir numa escrita que se mostra atraente tanto para o leitor comum como para o especialista, Machado se afasta das propostas modernistas e se aproxima do que há de mais interessante, a meu ver, na ficção atual, ou seja, justamente este duplo alcance da leitura. O que se opera, aqui, é algo que chamei, em obra citada, de "transgressão silenciosa", quer dizer, uma transgressão que não chama a atenção para o próprio ato transgressor, como nas vanguardas, preferindo optar pelo silêncio:
"Silêncio que não é imposto, como nos tempos da ditadura militar, mas produzido intencionalmente, servindo como base para a criação de uma nova literatura, menos pretensiosa, num certo sentido - porque consciente de seu papel relativo num mundo de verdades relativas -, e nem por isso menos inventiva. O que a ficção dos anos 80 deixa como legado, para a década seguinte e para este início de século, é a possibilidade de uma nova forma de ruptura, sem o alarde dos modernistas ou das vanguardas." 11
Ora, o estilo machadiano recusa justamente o alarde, seja o da retórica parnasiana, seja o da "ousadia" romântica. E, ao invés da transgressão ruidosa dos modernistas, opta pelo caminho mais sutil da ironia, como se sua escrita evocasse a cada página não a gargalhada mas o sorriso ameno, leve mover de lábios.
E, desse modo, assume de vez seu lugar no panorama de nossa ficção, ocupando vaga não na luxuosa sala reservada aos monstros sagrados da ficção modernista, mas na sala mais discreta, e nem por isso menos valiosa, dos ficcionistas brasileiros do século XXI.
NOTAS
1CANDIDO, Antonio. "Esquema de Machado de Assis", in: Vários escritos. 3ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Duas cidades, 1995, p. 39.
2CAMPOS, Haroldo. "Arte Pobre, Tempo de Pobreza, Poesia Menos", in: Metalinguagem & outras metas. 4ª ed. rev. e ampl. São Paulo: Perspectiva, p. 224
3Ibidem.
4BARBOSA, João Alexandre. "A modernidade no romance", in: PROENÇA FILHO, Domício (org.) O livro do seminário. São Paulo: LR Editores, 1983, p. 21.
5Ibidem, p. 23.
6Ibidem, p. 26.
7SANTIAGO, Silviano. "Fechado para balanço", in: PROENÇA FILHO, Domício, op. cit., p. 97-99.
8Ibidem, p. 100.
9LYOTARD, François. O pós-moderno explicado às crianças. 2ª ed. Trad. Tereza Coelho. Lisboa: Dom Quixote, 1993, p. 95.
10CARNEIRO, Flávio. No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Rio de Janeiro: Rocco, 2005, p. 25.
11Ibidem, p. 28.
BIBLIOGRAFIA
ASSIS, Machado de. "O alienista", in: O alienista e outros contos. São Paulo: Moderna, 1995.
LIMA, Luiz Costa. "O palimpsesto de Itaguaí", in: Pensando nos trópicos. Rio de Janeiro, Rocco, 1991.
SANTIAGO, Silviano. Em Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1981.
SANT'ANNA, Sérgio. O concerto de João Gilberto no Rio de Janeiro. São Paulo: Ática, 1982.
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