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Desfile
Era quando eu mais gostava, sem dúvida. Três horas da tarde, lençol ficando branco no varal, sol ardendo nas pedras do alpendre, nós quatro irmãs fugidas de dentro da casa pro quintal, carregando debaixo do braço a trouxinha colorida: vestido de seda carmim, saia rosa rendada, paletó escuro do meu pai morto, blusa azul clara de cetim que mamãe ganhou e nunca vestiu, coitada. Maria, tão branca, ainda levava a sombrinha. E às vezes o colar de pérolas falsas, um luxo!, e os sapatos de verniz que um dia seriam meus mas agora não, mamãe dizia, além dos cintos mais queridos do meu pai, depois do acontecido servindo de estrias negras e marrons da parede no canto atrás do armário, guardados, roubados.
Maria, sempre primeira, minha irmã pequena, subindo afoita pelas pedras até se equilibrar no alto do muro e andar daquele seu modo caçula carregando sombrinha de flores coloridas sobre fundo amarelo,
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salto alto, batom vermelho, blush, ajeitando os cachinhos castanhos do cabelo querendo ser mais bonita que mamãe. Maria olhando pro alto, esguia, tentando ser magra, senhorinha de si, até topar com o galho da goiabeira, que ninguém podava, e cair quase nos braços de Rita, a mais velha e corada de sol. Rita sempre rindo, até de papai, a única, pegando Maria no colo como se fosse filha e pregando beijos no choro de Maria até rolarem as duas pelo terreiro sujando cetim, sapatos, paletó, misturando poeira, folhas, as duas rindo de galhos e tombos, por fim se abraçando exaustas no chão, barriga pra cima, bocas abertas pro céu, como sempre, mamãe dizia, as duas malucas.
Depois Clarice, a tão bonita, mais do que mamãe, eu achava mas nunca falei. Leve, os pés certinhos descalços, no corpo só uma camisa grande branca de papai, as mangas dobradas até o cotovelo, Clarice prendendo com as mãos os cabelos pretos, compridos, lisos, prendendo os cabelos atrás da nuca, sorrindo pra nós três embaixo e parecendo, sendo, sem dúvida mais bonita que mamãe mas nunca ninguém falou, nem meu pai. Clarice, a única morena, colorida de sol e acho que de algumas plantas, a pele bronzeada sem ser vermelha como a de Rita, parecida demais com a índia do quadro pregado na parede do nosso quarto hipnotizando minhas noites sem sono, sonhando ser ela, a índia, e Clarice, a cor contrastando com o branco da camisa e dos dentes que ela mostrava e escondia num sorriso tão de feitiço que até parecia de propósito mas não era.
Clarice me fazendo sinal, que eu subisse com ela, não depois, como sempre, mas juntas dessa vez. As pedras, o muro, e de repente eu de vestido grená, sapatinhos de camurça azul marinho, prendedor de prata no cabelo, vendo minha irmã ali do lado, comigo, me olhando linda, tão igual à tarde. Foi me dando um nó, uma coisa, a garganta querendo falar, e então descobri que precisava urgente de uma maravilha, minha, saindo devagarinho da boca como se eu não quisesse que ela saísse assim, tornada em palavra. Mas saiu: Clarice, você é... esplêndida! Primeiro o silêncio, de séculos. Depois o aplauso. As três batendo palmas, Rita e Maria embaixo, Clarice do meu lado, minhas três irmãs me dando o prêmio daquela tarde, o meu primeiro na vida toda, sem eu ter nem começado o meu desfile, sempre o mais fraquinho, coitado. E agora aquilo: eu ali, estátua, ouvindo clap clap clap, ainda o riso de poeira, sol e folhas de Maria, Rita, e o olhar encantado de Clarice, minha irmã, esplêndida.
* Publicado em: Contexto - revista do departamento de línguas e letras da Universidade Federal do Espírito Santo. Nº 3. Vitória: 1994.
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