Flávio Carneiro

De fogos, magos e artifícios: uma fábula sem moral

Onde o autor narra a paixão, cegueira e morte do árabe Hassan Alzammah, apresenta ao leitor leigo um importante prefácio de Pablo Tessier, inquieta-se com certas reticências de um texto brilhante de Morel e, ao final, define a si mesmo como mero pirotécnico amador, reconhecendo sua insignificância.

Dizem a lenda e a enciclopédia que, no início dos tempos, a arte do fogo era empregada tanto para as coisas da guerra quanto da paz. Em seus primórdios, os mesmo artifícios usados no combate ao inimigo serviam para colorir os céus em dias de festa, inventando na noite o delírio policrômico do povo, sob as ordens de um mago pirotécnico.
Contam, ainda, que a pirotecnia nasceu entre os antigos chineses, indianos e egípcios. Os primeiros artesãos do fogo teriam ensinado alguns segredos de sua arte aos gregos, sendo daí transmitida aos romanos, que utilizavam os fogos sobretudo como artifícios bélicos. Com a queda do poderoso império romano, a
prática pirotécnica diluiu-se entre inúmeros e pouco habilidosos povos, permanecendo à margem de guerras e festas por algumas centenas de anos até ser reabilitada, nos séculos XI e XII, pelas mãos dos árabes, renascendo com novas misturas incendiárias mais brilhantes.
Os primeiros mestres pirotécnicos eram, na verdade, alquimistas. Homens de estranhos hábitos, transmitiam as combinações alquímicas geradoras dos fogos apenas para iniciados, seus aprendizes, e jamais utilizando a escrita. As transmissões eram sempre silenciosas, cercadas por um verdadeiro cerimonial esotérico. Nada deveria ser escrito a não ser no céu das noites escuras (com exceção dos chineses, que também escreviam no céu do dia).
Esses antigos artífices acreditavam que colocar em letras os fogos de artifício, escrever no papel seus segredos, significava obscurecê-los. Um fogo artificial só existia porque sua fórmula era transmitida apenas de um criador para outro, numa linguagem sem palavras, compostas de silenciosos rituais em louvor do fogo, ou seja, transmitida numa linguagem também de fogo.
Escrever no papel a fórmula representava duas coisas. Em primeiro lugar, a pretensão dos leigos de explicar o inexplicável, o que não chegava a preocupar em demasia os alquimistas pirotécnicos. Em segundo, e isto sim era preocupante, representava o início da construção de um universo de sombras, cujo efeito maléfico seria no mínimo o de ofuscar nos fogos a beleza dos brilhos. A estes manuais de pirotecnia, registros escritos das fórmulas alquímicas, deu-se o nome de fogos paralelos.
Cada fogo desenhado no céu por um dos mestres significava não apenas uma colorida diversão para os olhos, como pensavam os leigos, mas também a recriação perfeita de todo o universo. A cada fogo de artifício, o mundo era de novo criado. Da mesma forma, cada fogo paralelo era a morte da nova criação, sua sombra.
Aos que insistissem na escrita, na construção dos fogos paralelos, o destino reservaria surpresas pouco agradáveis, pelo menos enquanto houvesse um mínimo de poder as mãos dos pirotécnicos. Dos infratores conhecidos, o caso mais exemplar, ou o mais curioso, talvez seja o do árabe Nedjen Eddin Hassan Alzammah, que em fins do século XIII registrou em livro as fórmulas de alguns fogos preciosos. Não satisfeito em tê-los inventado, batizou cada um deles: Flor de Jasmim, Flor Experimentada, Luz da Lua, Outra Luz da Lua, Nova Luz da Lua, Voadores.
Seu livro* certamente serviu como valiosa colaboração para futuros experimentos na área, sendo sem dúvida o mais nobre precursor do que se poderia chamar de pirotecnia moderna. Tal pioneirismo, porém, custou a vida do talentoso autor.
Alzammah reuniu certa noite algumas dezenas de convidados, com o propósito de comunicar a existência do livro de sua autoria e realizar uma especial exibição pirotécnica. Ao lançar seu primeiro Voador, porém, concretizou-se a profecia: o brilho intenso invadiu seus olhos, cegando-o, para sempre. Alguns meses depois o árabe Alzammah pôs fim à própria vida, impedido que estava de ver voarem suas flores e luas.
Mais tarde, Morel, no seu belíssimo Traité pratique des feux d'artifice pour le spetacle et pour la guerre (1883), nos oferece, entre novas fórmulas de novos fogos - Subida de Faíscas, Pára-Quedas, Trovão e Cauda, Chuva de Prata, Chuva de Ouro, Estrelas Chinesas e tantos outros -, uma interessante e sem dúvida radical leitura dos fogos paralelos. Sua interpretação foi recebida com certa desconfiança pelos estudiosos da época, pelo fato de o autor ser dado a certas veleidades literárias, chegando a publicar, por conta própria, um volume de poemas, escritos nos intervalos de suas investigações pirotécnicas. Apesar disso, tornou-se uma referência, naquela época e ainda hoje. É uma explanação um pouco longa, ocupando dois terços do extenso prefácio do livro. Tentarei resumi-la em poucas palavras.
A tese principal defendida por Morel é a de que os antigos alquimistas pirotécnicos estavam para os cultivadores dos fogos paralelos como o escritor moderno (entenda-se: final do século XIX) está para o crítico literário - ocupação, aliás, ainda incipiente na época de Morel, mas já delineando seu território. O motivo que levava os antigos mestres a combater com toda a força aquele que se predispusesse a decifrar com palavras o segredo do fogo artificial (a fórmula alquímica) seria o medo de que as palavras descritivas de um Alzammah, por exemplo, quebrassem todo o encanto da pirotecnia, reduzindo-a a um amontoado insosso de papel e tinta. Do mesmo modo, o crítico representaria o rompimento com a beleza do objeto literário ou, nas palavras do próprio Morel, o crítico seria "le manteau noir avec lequel le rationalisme essaye de celer la luminosité magique de l'oeuvre d'art authentique."
O estudioso francês, reconhecidamente uma das maiores autoridades no ramo da pirotecnia, acreditava que os alquimistas pirotécnicos tinham previsto um perigo iminente: o surgimento de uma nova geração de homens fortes, violentos, que, sob a égide da razão e com o pretexto de melhorar a vida humana sobre a terra, trariam nada mais que a absoluta esterilidade.
A profecia teria sido concretizada com o surgimento da Química, entendida como ciência, em meados do século XIX. A intromissão dos doutores ilustrados no terreno da Alquimia deu-se em nome do progresso científico, cujos nobres ideais de melhoria da vida humana não passariam de um embuste: visavam à cura de enfermidades que eles próprios, ilustres pensadores, teriam criado, enfermidades decorrentes da deterioração da arte e, sobretudo, da filosofia.
Assim, os pretensos progressos no interior da Alquimia teriam como efeito a destruição da Alquimia, para dar origem à Química moderna, definida por nosso autor como um conjunto de fórmulas cuja aplicação prática tem passado ao largo dos ideais de melhoria e prolongamento da vida, sendo responsável menos pela cura de antigas doenças do que pela criação de novas, mais sutis e corrosivas.
Foi justamente por esse temor, segundo Morel, que no decorrer do século XVIII os pirotécnicos recusaram a oferta de certas figuras ilustres da corte de Luís XV, qual seja: o apoio material e a proteção do rei para a reunião dos mestres artífices do fogo em corporações, com o intuito de realizar novos inventos e produzir fogos de brilho mais intenso e variado. A recusa foi imediata e a oferta serviu apenas para que os mestres rasdicalizassem ainda mais seu esoterismo. Urgia evitar aqueles homens e sua decantada boa vontade.
No seu estilo direto, sem meias palavras e ao mesmo tempo sem parecer grosseiro, o autor não poupa munição no ataque frontal aos criadores e cultivadores do fogo paralelo. Também não escapam de sua pena ferina todos os racionalistas profissionais, sobretudo a classe dos críticos literários. Para Morel, os críticos não são mais que uma espécie de reencarnação de Alzammah.
Não deixa de ser curioso Morel ter escrito esse prefácio em pleno século XIX, quando as idéias positivistas grassavam à vontade pelo mundo dito civilizado. Sua interpretação da história dos fogos paralelos, num discurso marcado ao mesmo tempo pela ironia, pelo sarcasmo e pela força estonteante com que golpeia os adversários, é contrária às idéias dominantes na época e o coloca, de certo modo, como um provável e pouco conhecido seguidor de Nietzsche, que havia publicado, onze anos antes da publicação do livro de Morel, sua obra A Origem da Tragédia (1872), na qual afirma que um dos sintomas de decadência da cultura ocidental - legítima herdeira de Sócrates - é o fato de que, nesta cultura, para existir arte é preciso que exista um discurso legitimador chamado história da arte. Só é de fato artístico o objeto merecedor de tal denominação por parte da crítica ou da história oficial, assim como, de acordo com a visão de Morel, vai chegar o tempo em que só existirá nos céus um fogo de artifício se numa página de livro houver a dissecação de sua fórmula: fogo paralelo.
Costumo reler de tempos em tempos, com renovado fascínio, o prefácio de Morel. Apesar da minha admiração por sua inteligência elegante e feroz, sempre esbarro em duas lacunas, dois espaços vazios que venho tentando, sem muito sucesso, preencher com minhas próprias reflexões.
A primeira lacuna diz respeito à vida ou, mais propriamente, aos últimos meses de vida de Alzammah. Nos comentários sobre esse representante dos primeiros praticantes dos fogos paralelos, Morel omite qualquer referência ao período que vai do momento da cegueira até o do suicídio. A documentação sobre essa época da vida de Alzammah já existia quando Morel escreveu seu livro e, metódico que era, certamente a terá lido.
Pode-se ler, por exemplo, num outro interessante prefácio, desta vez de autoria do espanhol Pablo Tessier, em seu conhecido livro Química Pirotécnica o El Progreso de Los Fuegos Artificiales (1854), que Alzammah, devido à súbita cegueira, passou a ser acompanhado vinte e quatro horas por dia por um jovem discípulo, pelo qual o mestre tinha especial apreço e a quem transmitiu grande parte de sua experiência no trato com os fogos de artifício.
No seu prefácio, Pablo nos conta que Alzammah, antes de ficar completamente cego, costumava percorrer o deserto na companhia de seu atento e fiel aprendiz, a serviço de diferentes chefes de tribo. Sem se fixarem definitivamente a nenhum clã, ora auxiliavam nas infinitas guerras tribais - quando se utilizavam os fogos como linguagem codificada entre aliados - ora enchiam de cores o céu nas festas da vitória.
Não raro, eram também chamados a mostrar sua arte pirotécnica nas suntuosas festas palacianas, durante as quais o califa Motawakkel al-Raschid, conhecido sobretudo pela crueldade e intolerância com que tratava tanto seus inimigos quanto os próprios súditos, exibia poder e posses a seletos convidados, sabendo que o tempo dos califas já se extinguia, dando lugar aos também imodestos sultões egípcios ou turcos otomanos.
Curiosamente, o jovem discípulo de Alzammah era requisitado pelos membros importantes do califato, e às vezes pelo próprio califa, menos por sua habilidade pirotécnica do que pela retórica. Entre as mil e uma atrações que pontuavam a festa, era comum a presença de um grupo de homens e mulheres que preferiam se abster do espetáculo pirotécnico ao ar livre, comandado magnificamente pelo mestre, para permanecerem num dos confortáveis salões palacianos, onde o jovem lhes descrevia, em imagens de belíssimo efeito, as peripécias coloridas da noite lá de fora, de modo que muitas das vezes o espetáculo da pirotecnia, feito exclusivamente para os olhos, transformava-se em fina iguaria para os ouvidos.
Dessa forma, o jovem aprendiz de pirotecnia - em lugar algum, infelizmente, ficou registrado seu nome - acabava criando seu próprio espetáculo, seu fogo paralelo. Misturando ensinamento e palavra, ia formando no imaginário dos ouvintes os belos fogos de artifício, tão ou mais procurados que os de seu mestre.
Depois do acidente, o cego Alzammah dedicou os últimos meses de vida a ouvir, pela voz do jovem, a descrição dos fogos que criara e que fora impedido de ver desde a fatídica festa por ele mesmo organizada. A cada noite, pedia a seu discípulo e acompanhante que lhe descrevesse em detalhes a viagem celeste do fogo criado um dia pela inspirada combinação de fascinantes e perigosos elementos feitos para o brilho e, às vezes, a escuridão. Vistos assim pelas belas palavras do outro, os fogos assumiam tantas formas e cores quantas pudessem conceber a habilidade retórica do jovem e a rica imaginação do velho.
Por que Morel teria omitido passagem tão importante da biografia de Alzammah? Talvez porque, ao comentá-la, se visse a obrigado a concluir, contra si mesmo, que determinados fogos paralelos podem ser mais brilhantes que os fogos principais? Ou porque a questão estaria no fato de que se trata de uma diferença e não exatamente de uma incompatibilidade a relação entre o fogo de artifício e o fogo paralelo, na medida em que são duas formas de sabedoria, cada qual com suas próprias sombras, desvios, magias? Ou, ainda, numa formulação mais poética e nem por isso menos verdadeira, porque teria descoberto que o segredo do fogo se encontra na palavra fogo? Talvez seja outra a pergunta, quem sabe.
Também nada se pode afirmar com certeza a propósito da segunda lacuna do seu prefácio. Morel condena com veemência Alzammah e todos os que, como ele, se dispuseram a descrever os fogos de artifício, a colocar em palavras suas fórmulas. Mas, à exceção do prefácio em que condena os cultivadores do fogo paralelo, todo o seu livro é justamente um fogo paralelo, pois se trata de um verdadeiro manual pirotécnico, ao estilo do árabe Alzammah, inclusive utilizando conhecimentos científicos da Química moderna, por ele tão combatida. Se ele, com sua inteligência incomum, percebeu contradição tão evidente, por que não a justificou? Talvez não seja tão evidente assim, penso comigo mesmo. Talvez ele tenha desejado mesmo ser contraditório, numa ironia aos que, como eu, tentam achar em tudo uma lógica linear.
Para minha frustração e, quem sabe, aprendizagem, a única conclusão a que pude chegar, depois de todos esses anos de pesquisas e divagações, é que a história de muitos de nós - nosso nome é legião - não difere muito da história destes senhores e de suas paixões perigosas. Talvez a única verdade possível seja a de que resta, para quem escreve, um só caminho: incendiar palavras na fabricação de fogos, ainda que num espetáculo, como este, amador.

* Texto publicado em: Revista Sofia. Nº 8. Vitória: Editora da Universidade Federal do Espírito Santo, 2002.


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