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Como e por que ler Machado de Assis
Se você, leitor, acredita que nas próximas linhas irá descobrir finalmente a fórmula mágica para ler Memórias póstumas de Brás Cubas, pode deixar de lado o artigo que tem nas mãos. Ainda não criaram nenhum manual de instruções para ler Machado, felizmente. Se, no entanto, for do seu interesse conhecer algumas dicas de um leitor abusado, aí vão elas.
Em primeiro lugar, esqueça quem foi Machado de Assis. Pouco importa se ele era negro, branco ou mulato, se escreveu não sei quantos livros, se foi ajudante de padaria ou fundador da Academia Brasileira de Letras. Pense apenas que você tem diante dos olhos as memórias de nada mais nada menos que um defunto, Brás Cubas, o qual, aliás, adverte desde o início: não é um autor defunto, é um defunto autor. (Só isso basta para que você esqueça o que lhe ensinaram na escola: que Machado é um autor
realista. Imagina se não fosse...)
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Segunda sugestão: não tenha pressa. Um bom romance deve ser lido devagar, sem correria, se possível sem prazo para terminar - não estou falando, claro, da leitura por obrigação, falo da leitura sem compromisso, a não ser o compromisso com o próprio prazer de ler. Quem lê Memórias póstumas de Brás Cubas com um olho no papel e outro no relógio, querendo acabar logo, corre o risco de achar o livro chato e receber uma bronca do próprio Brás Cubas: "o maior defeito deste livro és tu, leitor. Tu tens pressa de envelhecer, e o livro anda devagar; tu amas a narração direita e nutrida, o estilo regular e fluente, e este livro e o meu estilo são como os ébrios, guinam à direita e à esquerda, andam e param, resmungam, urram, gargalham, ameaçam o céu, escorregam e caem...".
E, por fim, desconfie sempre do narrador. Brás Cubas é um sujeito irônico - principalmente depois de morto, quando já não tinha que prestar satisfação a ninguém, ora essa! -, e sua história é cheia de surpresas. Desnecessário dizer que é justamente isso que caracteriza um bom romance: não ser previsível, não dar tudo de mão beijada. O narrador brinca com o leitor e o melhor da leitura talvez esteja aí, nesse jogo de ir montando para si mesmo a história, ou as histórias, que o outro vai contando aos pedaços, indo e vindo, num passo malandro. Uma coisa não se pode dizer de Machado: que ele despreza a inteligência do leitor. De forma alguma! Se você odeia aqueles romances em que o narrador acredita que o leitor é um débil mental e fica explicando tudo o que a gente está careca de saber, então não tenha medo, você vai gostar desse livro.
Mas, afinal de contas, por que ler Machado de Assis? Antes de mais nada, porque é muito bom! O que, convenhamos, já é razão suficiente para se fazer qualquer coisa. De todo modo, se você acha que a resposta é pouco convincente, temos outras: porque Machado é um escritor que nos ensina a ler e a escrever sem que pareça estar ensinando coisíssima nenhuma; porque é um autor que inventava, em pleno século XIX, a literatura do século XX; porque é engraçado; porque é inteligente sem ser pedante; porque cai no vestibular (opa, essa não vale).
Tudo isso serve como resposta. Há, no entanto, um outro motivo, que nos toca a todos nesse momento específico. Machado de Assis nos mostra que o mundo não pode ser entendido a partir de uma mera oposição entre certo e errado, bem e mal. Era assim, dessa forma tão simplória, que pensava Bentinho, o narrador de Dom Casmurro. E foi por pensar desse modo que Bentinho jamais conseguiu entender Capitu, a única mulher que ele realmente amou. Capitu é a própria imagem da ambigüidade. Menina e mulher, inocente e maliciosa, ela escapa a qualquer definição redutora, qualquer tentativa de rotulação. Bentinho passa a história toda tentando descobrir se foi ou não traído por Capitu, e essa obsessão só o leva a... perder Capitu, para sempre.
Pensando bem, talvez Bentinho não a merecesse. Quem há de saber? O importante é que Machado, ao criar personagens como Capitu, Bentinho, Brás Cubas, Quincas Borba, entre outros, coloca em xeque nossa mania de querer entender as coisas sempre a partir de duas únicas opções: certo ou errado.
Quando Machado escreveu Memórias póstumas de Brás Cubas, a moda - não muito diferente de hoje - era escrever romance cuja história girasse ao redor do eterno duelo entre o bem e o mal. Romance tinha que ter herói e tinha que ter vilão. Machado foge da armadilha e escreve uma história sem heróis nem vilões, um história de pessoas comuns, com seus acertos e erros. Só o narrador é diferente das pessoas comuns, afinal trata-se de um defunto, mas é exatamente aí que reside a ambigüidade. Por estar morto, não tem mais que se sujeitar ao maniqueísmo da moral, das leis e das conveniências sociais, e então pode, finalmente, ser o que sempre foi, o que todos somos: contraditórios, ambíguos, certos e errados.
Num momento em que o mundo parece se dividir entre terroristas malucos e presidentes desajustados, é interessante saber que há mais de cem anos um escritor brasileiro já mandava seu recado, de uma lucidez exemplar. É Brás Cubas quem diz, a certa altura de suas memórias: "Deus te livre, leitor, de uma idéia fixa."
* Artigo publicado em: Jornal O Popular. Goiânia, página especial sobre Memórias Póstumas de Brás Cubas, do dia 03/10/2001.
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