Flávio Carneiro


Entrevistas


QUEM ESCREVE DEVE TER PACIÊNCIA
Jornal Pernambuco, novembro de 2010
Entrevista concedida a Cristhiano Aguiar.


Flávio, o que levou você a escrever o Leitor fingido? Você acha que a figura do “leitor” continua em segundo plano nas reflexões literárias?
Sempre achei que o ofício de escritor está diretamente relacionado a uma experiência de leitura. Não acredito em escritor que não lê. Nesse livro, quis falar um pouco disso, dessa dupla face da literatura: o escritor e o leitor.
As reflexões sobre a figura do leitor já foram mais escassas. Desde os anos 1970, na Alemanha, nos EUA e mais recentemente no Brasil esse quadro vem mudando e hoje já se pode falar em linhas de pesquisa consistentes sobre o tema da leitura. Mas acho que ainda pode melhorar, o leitor é parte fundamental da literatura e merece mais atenção por parte dos pesquisadores da área.
No seu Leitor fingido, você faz uma interessante mistura entre crítica literária, ficção e escrita autobiográfica. Como e por que você chegou a esta forma de escrita para o livro?
Demorei muitos anos trabalhando no projeto do livro porque não sabia ainda como escrevê—lo. Até que optei por uma escrita híbrida, que misturasse ficção, ensaio e depoimento. A opção veio naturalmente e depois pensei comigo que tudo o que escrevi até hoje é assim mesmo, essa escrita misturada. Nos meus ensaios, procuro usar técnicas narrativas, buscando prender a atenção do leitor, inclusive com estratégias de criação de certo suspense, como o de sugerir certa interpretação de determinado romance e ir revelando essa interpretação aos poucos, deixando a surpresa para o final. Ricardo Piglia dizia isso, que a crítica é uma variante do gênero policial. Concordo com ele.
E em tudo o que escrevo está, claro, minha própria vida. O escritor escreve sempre sobre sua vida. Não de forma explícita, direta, mas pelo disfarce, pelo fingimento ficcional.
E a leitura também é uma forma de autobiografia. Se você quiser contar a alguém partes da sua vida, mostre para esse alguém os livros que você leu e as anotações que fez neles. Está tudo lá. Então, se queria escrever um livro sobre leitura e escrita, achei que o melhor seria investir nessa proposta: a de um livro que fosse uma história de vida, da vida de um leitor.

Na página 61, você começa um raciocínio sobre aquilo que te leva a não gostar de um livro, contudo não chega a aprofundar este aspecto. Você poderia falar mais sobre isso?
O leitor deve, sim, fazer a distinção entre livros bons e ruins. O que não se pode é ditar regras: esse livro todo mundo tem que achar ótimo e esse todos devem jogar no lixo. Isso é autoritarismo e já sabemos quais são os resultados, não é? Agora, um leitor deve saber escolher. Deve ter seus critérios de escolha.
No meu caso, não gosto de livro que subestime minha inteligência. Se percebo que um romance está querendo me doutrinar, me dar uma lição de moral – a famosa “mensagem” –, não continuo a ler.
Assim como o escritor deve saber quando precisa abandonar o que está escrevendo e partir para outra história, o leitor também deve saber quando abandonar um livro que está lendo. O que é muito difícil, sem dúvida. Também não gosto de livros que não me deixam imaginar, que explicam demais, que me tiram o prazer (detetivesco) da descoberta.

Desde muito tempo, a literatura tem como um dos seus temas preferidos discutir a si própria. Penso, contudo, que na ficção moderna e contemporânea, isto se acentuou. Quais as explicações para isso e que autores, cuja elemento da metaficção seja importante, você destaca?
Não há uma única explicação para isso. O que penso, no caso brasileiro, é que desde o século XIX e durante quase todo o século XX, a ficção brasileira quis se firmar como uma literatura nacional, brasileira. Isso foi importante mas custou aos escritores certa camisa-de-força: quem não escrevesse sobre o Brasil, sobre nossas terras, nossa cultura, era deixado à margem pela crítica e mesmo pelos leitores, na sua maioria. Este seria um dos motivos para a pouca projeção de autores brasileiros que escreveram literatura fantástica, falando de lugares imaginários, com seres imaginários etc., como é o caso do Murilo Rubião.
Nas últimas décadas, devido talvez a todo um processo de globalização da cultura, um pouco do peso de ter que escrever uma ficção sobre o Brasil tenha diminuído, com os escritores se sentindo um pouco mais livres, com novas opções, inclusive do mesmo fantástico, que hoje aparece como uma forte vertente da nossa ficção. E podendo optar também pela ficção voltada para si mesma, num jogo de metalinguagem. Nessa linha, eu destacaria autores como Sérgio Sant’Anna, Silviano Santiago, Chico Buarque, Adriana Lunardi. Citar nomes é sempre temerário, esses são os que me vêm à lembrança agora mas há outros, sem dúvida.

Qual a sua leitura de ficção brasileira hoje? É possível traçar vertentes e características?
Escrevi um livro sobre isso, No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. Lá respondo melhor a sua pergunta. O que acho é que a ficção brasileira atual é bastante rica, em qualidade e em variedade. Acredito que a falta de um modelo a seguir pode ter sido um problema, sobretudo no início dos anos 80, no período pós-ditadura, mas também uma grande vantagem para as novas gerações de escritores. Se, por um lado, você ficava sem rumo, por outro tinha vários rumos pela frente. A questão era escolher. E os ficcionistas brasileiros escolheram bem,
tanto os novos quanto os já consagrados e que estão sempre buscando arejar sua própria ficção.
Só pra lembrar algumas das vertentes, poderia citar a do romance policial, que nunca teve espaço na nossa tradição literária e que vem, desde o final dos anos 60, com Rubem Fonseca, encontrando ótimos ficcionistas. O mesmo ocorre com o fantástico. E a ficção passada fora dos grandes centros, em cidades pequenas ou em lugares do interior do país, também tem aparecido, na contramão da nossa tendência ficcional, que é a do romance urbano. Vejo ainda como outras vertentes promissoras a do humor, a do diálogo com a linguagem da mídia (em especial da televisão e da internet), a do conto curto, entre outras.
O que te dá mais prazer: praticar a crítica literária na imprensa e na internet, ou dentro da universidade? Você concorda com a leitura que muitos fazem de uma “crise” da crítica nestes dois lugares de atuação?
Para falar a verdade, a crítica que faço na imprensa, na internet ou na universidade segue o mesmo padrão: seriedade na abordagem, com sustentação teórica e de história literária, e clareza de linguagem. E muito de imaginação. É isso o que busco sempre. Pode ser que não tenha conseguido, só o leitor pode julgar, mas é o que penso ser o melhor para mim, enquanto alguém que também escreve sobre literatura.
Não acho que haja uma crise da crítica. Acho que as pessoas ainda estão procurando ler uma forma de crítica que não cabe mais, a do grande mestre, que diz o que se deve e o que não se deve ler. Quem procura esse típico de crítica vai se frustrar, como alguém que procure o grande romance, o autor genial a servir de modelo. Não há mais espaço para isso no mundo em que vivemos.
Acredito que há críticos ruins hoje, despreparados, mas também há críticos muito bons, com uma nova visão do que seja a crítica. Em todos os períodos de nossa história literária houve a convivência de críticos bons e ruins. Cabe ao leitor escolher o que ler, também em termos de crítica literária.

É verdade que você foi jogador de futebol quando adolescente? Literatura e futebol combinam?
Dos onze aos dezoito anos joguei futebol, digamos, a sério. Disputei todas as categorias de base da minha época e fui campeão estadual algumas vezes. Morava em Goiânia e cheguei a jogar temporadas no antigo Estádio Olímpico e depois no moderno Serra Dourada. Aos dezoito anos, recebi um convite para me profissionalizar, pelo Guarani de Campinas, que havia sido campeão brasileiro dois anos antes, em 1978. Mas acabei optando por me mudar para o Rio e seguir outro sonho, o de ser escritor.
Há muitas afinidades entre literatura e futebol. A principal, eu acho, é que em ambos o que manda é o imponderável, a surpresa. Ninguém sabe como um bom romance vai acabar, o mistério está em cada página. Quanto ao futebol, há uma frase bastante conhecida e que define bem um dos motivos da paixão por esse esporte: futebol é uma caixinha de surpresas. E há jogadores que se parecem com personagens. Há os líricos, como Garrincha, os épicos, feito o Pelé, os cômicos, como Dadá Maravilha.
Futebol e literatura combinam muito. Falo disso no livro Passe de Letra: literatura & futebol. É uma reunião das crônicas que escrevi durante dois anos para o jornal de literatura Rascunho, de Curitiba.

Seus romances O campeonato e A confissão partem de tramas do romance policial. Como a literatura brasileira atual trata o tema “crime”?
Nem toda ficção que tenha o crime como tema pode ser entendida como policial. Para ser um romance policial, é preciso que haja um crime, um detetive, uma investigação, ou, se não houver, que haja esses “espaços” – às vezes o “espaço” do detetive é preenchido pelo próprio leitor, por exemplo. Mas o crime pode ser tratado de outra forma, como mote para um romance de crítica social, ou de depoimento ficcional de alguém que mora numa favela ou que lida com o tráfico noutro ambiente urbano.
Na literatura brasileira atual, essas vertentes convivem. A que mais me agrada é a do policial. Vejo o romance policial como um formato privilegiado dentre os modos de se escrever ficção, aquele em que é possível mesclar entretenimento e sofisticação, jogo intelectual e suspense.
Nos romances que você citou, minha preocupação foi, como sempre, a de contar bem uma história, a de fazer com que o leitor quisesse seguir adiante, sem abandonar o livro. Quer dizer, procurei e procuro escrever aquilo que me agradaria enquanto leitor. Gosto de romances assim, que me prendem à leitura, e que ao mesmo tempo me incluem no processo, me deixando espaço para o imaginário. Foi isso o que pretendi fazer nesses romances, buscando uma história atraente e procurando deixar espaço para que o leitor também pudesse participar do jogo, pensando e imaginando por conta própria.

Há algum tempo, entrevistei um editor brasileiro que criticava o fato do Estado brasileiro ser o maior comprador de livros do mercado editorial. Sabemos que um dos filões desse mercado é a literatura infantil e juvenil. Enquanto escritor que também escreve para crianças e jovens, como você analisa a atuação do Estado nesse setor?
Esta é uma situação complexa. O ideal seria que o livro infantil e juvenil tivesse seu lugar não apenas nas escolas mas também no cotidiano do leitor, que alguém entrasse numa livraria e encontrasse não apenas poesia e romance para adultos mas também romance e poesia para crianças e jovens. Desde que comecei a escrever livros infantis e juvenis, tive claro pra mim que não se pode fazer distinção de valor entre esse gênero e o outro, digamos só para adultos. Acredito que toda obra para crianças deve agradar também ao adulto, é uma condição para a sua qualidade.
Infelizmente não é assim que as coisas funcionam. Literatura infantil e juvenil ainda é vista como uma forma sedutora de passar ensinamentos, de passar valores. Acho isso um grande, um gravíssimo erro. Literatura não é pedagogia. Aprendemos quando lemos um bom romance, mas um romance não deve querer ensinar nada. Se aprendemos é porque o romance em si, com a história que nos contou, nos fez um pouco melhores do que éramos antes da leitura.
O que acontece é que, por pensar nessa literatura como mero suplemento didático, tanto o governo quanto a sociedade em geral decretam que lugar de livro para crianças e jovens é na escola, não nas livrarias e depois na casa do leitor. Um desastre isso.

Na sua oficina durante o A letra e a voz – Festival recifense de literatura, você falou um pouco sobre o tema “vida literária”. A literatura, enquanto carreira, já é algo viável? Quais os caminhos para um escritor se profissionalizar?
Viver de literatura no Brasil é viável sim. O difícil, quase impossível, é viver de direitos autorais. O que o escritor ganha com a venda dos seus livros é irrisório, apenas 10% do valor do livro vai para o escritor. Num país que lê pouco e compra poucos livros, não dá para viver disso.
Por isso a grande maioria dos escritores no Brasil tem outras profissões além da de escritor. É professor na universidade, ou escreve para jornais e revistas, dá palestras, cursos, oficinas.
Para um escritor se profissionalizar, em primeiro lugar é preciso que escreva. Tem muita gente pensando primeiro na carreira, na exposição midiática e coisas do tipo. Está errado. Primeiro o escritor tem que escrever, tem que lutar com as palavras todo dia, como diria Drummond. Não digo que o escritor não deva pensar em se profissionalizar. Se achar que é importante ser um escritor profissional, deve sim buscar ser um profissional. Agora, para isso ele deve levar muito a sério o que faz, não achar que pode escrever uma coisinha aqui, outra ali, deve ler muito, deve se aprimorar, escrever, retocar, escrever, retocar, sem pressa. Isso é importante: quem escreve deve ter paciência, muita paciência.

Você poderia falar um pouco do seu próximo livro?
É um romance, o último do que chamei de Trilogia do Rio de Janeiro. Quis escrever 3 romances que tivessem o Rio como cenário e que de algum modo dialogassem com gêneros considerados menores, de puro entretenimento, normalmente rejeitados pela crítica. O primeiro foi um policial, O Campeonato. O segundo um romance que se poderia chamar de literatura fantástica, A Confissão. E o de agora, A Ilha, é uma ficção científica, o cenário é a cidade do Rio de Janeiro, num futuro distante. Estou terminando e será lançado ano que vem.





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