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PRESENTE PARA OS LEITORES
Agência Literária Lúcia Riff, maio de 2005
Entrevista concedida a Márcio Vassalo
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Em sua bela coletânea de resenhas, No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI (Editora Rocco), recém-lançada, Flávio Carneiro faz um precioso apanhado e dá dicas de leitura.
Na apresentação de No país do presente, você revela que a sua idéia foi elaborar um mapeamento da prosa ficcional brasileira a partir de 2000. Qual foi o grande desafio desse trabalho?
Acredito que o grande desafio tenha sido o de selecionar as obras que considerei mais significativas para a composição desse mapeamento. Nem sempre é fácil - na vida e na literatura - optar. Há muitos livros bons no panorama da ficção brasileira atual, e muita propaganda enganosa também. Procurei ser o mais criterioso possível, evitando apelos de qualquer outra ordem que não fosse a da qualidade e da representatividade literárias. Ainda assim, estou ciente de ter cometido uma ou outra injustiça.
O subtítulo do livro é Ficção Brasileira no Início do Século XXI. Acima de tudo, o que essa ficção tem de mais atraente, para você, Flávio?
A diversidade. Sei que não há nenhum período literário homogêneo - basta pensarmos na multiplicidade de vozes do romantismo ou do modernismo, por exemplo -, porém, o que marca a atualidade é que não há propriamente confronto, mas convivência das mais variadas vertentes, ainda que algumas em tensão com outras (em tensão, não em conflito). Alguns acham isso uma pobreza, saudosos dos tempos combativos das vanguardas. Eu acho, pelo contrário, uma grande riqueza saber que não há mais patrulhas, que o escritor pode seguir seu próprio caminho, sem precisar ser contra ou a favor de determinada corrente. Daí achar um retrocesso essa insistência (ainda que para efeitos meramente midiáticos) na idéia de geração, grupo, etc.
Também na apresentação do livro, você escreve: "E o que dizer da ficção brasileira produzida nos primeiros anos do século XXI? Em primeiro lugar, é bom lembrar que falar do presente é tarefa delicada. Se a história tradicional nos ensinou que é preciso ter certo distanciamento do fato para analisá-lo com imparcialidade, os novos historiadores têm defendido idéia contrária: é preciso ler o contemporâneo de dentro mesmo do contemporâneo. O que é mais delicado nessa história de falar do presente?
Falar do presente significa aceitar a incerteza. Aliás, se pensarmos bem, sempre convivemos com a incerteza, mesmo quando falamos do passado. De todo modo, quando falamos de algo ocorrido há vinte ou trinta anos, temos pelo menos a ilusão de que falamos sobre alguma coisa já estabelecida. Essa ilusão nos fornece, a princípio, um solo mais firme. Falar de algo que ainda está se processando, que muda a cada dia, requer outra postura, que a história tradicional (a geral e a literária) evitava e que, a meu ver, é fascinante. Você é obrigado a conviver com a dúvida. Grande parte dos críticos foge disso, porque acredita que não se pode saber ao certo se determinada obra tem ou não valor, se vai ficar ou não para a posteridade. Acho isso uma bobagem. O crítico não tem que olhar sempre para trás, tem que assumir riscos, falar do presente no meio mesmo do presente. Nesse movimento acredito que o crítico se aproxima do ficcionista. Porque, então, um e outro estão lidando com o imponderável, amparados cada qual por sua formação, sua técnica, seu olhar sobre o mundo, e sujeitos, ambos, a cair no abismo a cada passo.
Por falar em abismos e dúvidas, um pensamento seu publicado no livro: "(...) se é certo que conviver com a incerteza pode nos levar ao caos, também é justo dizer que pode nos livrar da ilusão de que há verdades absolutas e de que todo gesto humano deve ser devidamente catalogado, depois de dissecado plenamente. Quem lida com literatura sabe que só há verdades relativas e é imbuído desse pensamento que se deve voltar os olhos para o presente, sem a pretensão de dar explicações definitivas ou cair na armadilha de tentar estabelecer futuros cânones". Em que outros aspectos a incerteza é um alimento essencial para o escritor?
A incerteza acompanha o escritor desde o início, desde aquele momento inicial, em que ele teve o vislumbre de uma idéia (um personagem, um cenário, uma cena, uma fala qualquer, uma palavra meio sem sentido lançada no papel). Por mais racional e metódico que ele seja, não poderá jamais ter certeza do que vai sair dali, daquele primeiro impulso. Depois vai segurando as rédeas, dando um contorno que lhe parece bom, dando forma à sua história, até colocar nela um ponto final. Mas aí começa outra incerteza: como seu livro será lido? Impossível saber. Ele terá que conviver com essa impossibilidade, a de saber como sua história foi ou está sendo lida por seus contemporâneos. E também, claro, jamais poderá saber como será lido no futuro (aliás, não pode nem ter certeza de que realmente será lido no futuro). Longe, no entanto, de ser um problema, essa incerteza é a matéria-prima do escritor. Acredito que os bons escritores sabem convertê-la em papel e tinta, criando histórias que serão, por sua vez, geradoras de novas incertezas, agora no pensamento e na imaginação do leitor.
Você de novo: "Ao contrário do que rezam os antigos manuais, a instabilidade deve ser entendida não como adversário, mas como aliada. Borges escreveu, certa feita, que nada se edifica sobre a pedra, e sim sobre a areia, mas é nosso dever edificar como se a areia fosse pedra. Falar do presente é justamente isso". Em que aspectos a edificação nessa areia com pele de pedra é essencial?
Acho que, no exercício da crítica, é preciso criar alguns pontos de apoio, para que a instabilidade também não seja total, excessiva, impedindo, assim, a própria existência da leitura. Acredito ser possível, e recomendável, estabelecer certos critérios, certos parâmetros norteadores para o contato com o texto literário, sobretudo com aquele que acabou de sair da gráfica. Sem esquecer que o solo em que pisa é arenoso, o crítico pode ir inventando para si próprio lugares mais seguros e com eles seguir caminho.
Até o final do ano você está lançando um romance, pela Rocco, mas você disse que prefere não falar nele por enquanto, certo? Falar num romance que ainda não saiu dá frieza na surpresa?
Posso falar um pouco do romance sim, sem problemas. É que quando te disse isso estava muito envolvido ainda com este livro de crítica. O romance vai se chamar A CONFISSÃO e é narrado por um homem que seqüestra uma mulher de madrugada e a leva para uma casa isolada, numa praia deserta. Lá, ele a tranqüiliza, dizendo que não lhe fará mal, apenas quer que ela ouça uma longa história que ele tem para lhe contar. O romance é essa história. No final, o leitor fica sabendo por que o homem escolheu aquela mulher, e não outra, para ouvir sua narrativa.
Na sua opinião, mais do que tudo, o que esquenta um livro na cabeça, no coração, na expectativa do leitor?
Não dá pra saber. Olha, querer responder com exatidão a essa pergunta é quase uma violência. O que encanta a uns aborrece a outros, e o mesmo leitor muda tanto que, no momento exato em que acabasse de responder à sua pergunta, talvez a resposta já tivesse se tornado ultrapassada pela chegada de novos desejos de leitura. Isso é fascinante, para quem escreve e para quem lê, saber que nunca somos iguais a ninguém, nem a nós mesmos, e que carregamos essa natureza instável para tudo aquilo que lemos e escrevemos.
Também na apresentação de No país do presente, você adverte o leitor de que nem todos os livros selecionados estão isentos de ressalvas. "Não se trata propriamente de uma antologia, algo como 'a melhor ficção do início do século XXI.' Tampouco se pode dizer que o critério norteador dessa escolha tenha sido unicamente o da representatividade, excluindo a qualidade", você explica. E depois acrescenta: "Busquei um meio-termo, de modo que as obras selecionadas fossem, ao mesmo tempo, representativas da diversidade de nossa produção atual e apresentassem boa qualidade literária, ainda que, em alguns casos, com um ou outro pequeno problema". Tem livros que te puxam como leitor, e tem livros que (mesmo quando ainda não nasceram), te puxam como escritor. O que mais te puxa para dentro de um livro, Flávio?
Gosto de muita coisa, em se tratando de literatura. O que mais me atrai, no entanto, são histórias nas quais prevalece a fantasia, a imaginação. Se pudesse, passaria mais tempo lendo ficção fantástica, ficção científica, ficção policial (em que imaginação e raciocínio lógico se aliam). Uma vez um autor de que gosto muito (e estou sempre citando), Italo Calvino, disse que estava cansado de escrever os livros que as pessoas queriam ler (no caso, seus primeiros romances, de feição neorealista) e que, daquele momento em diante, iria escrever os livros que ele gostaria de ler. Concordo plenamente com essa estratégia: escrever aquilo que você gostaria de ler. Talvez por isso meus livros de ficção - os infanto-juvenis e os outros - caminhem ora para o fantástico, ora para o policial. Considero que um livro meu está pronto para ir para a editora quando percebo que é um livro que eu gostaria de ler, quer dizer, que eu gostaria de ver numa livraria, folhear, ler o comecinho e dizer comigo mesmo: esse parece bom, vou levar (e não largar antes do fim, é lógico).
Por outro lado, quando está lendo, ou escrevendo, o que faz você ter vontade de desistir de um livro?
Quando estou lendo, tenho vontade de abandonar o livro quando percebo que a voz do autor está soando alta demais. Faz um barulho insuportável quando o autor resolve meter sua voz em meio às dos personagens. Chamo a isso de "voz intrusa." São aqueles comentários no meio da história, aquelas mensagens, aqueles rasgos de falsa sabedoria. Isso realmente me irrita. O autor deve respeitar a autonomia de seus personagens e, sobretudo, a do leitor. Sua função é criar a história, só isso (o que já é muito, sem dúvida). Acho detestável, e perigosíssimo, alguém usar a ficção para passar ideologia, por mais politicamente correta que seja, ou para esbanjar erudição. Quanto a abandonar um livro que estou escrevendo, já aconteceu algumas vezes. Esse mesmo, A confissão, comecei a escrever antes do romance policial O campeonato. Abandonei porque estava ficando um pouco pesado demais (achei que, se eu ganhasse aquele livro de presente, iria gostar de ler o comecinho mas depois iria me cansar e deixar pra lá). Preferi partir para outra história, que me desse mais prazer (de escrever e ler). Há vários motivos para se abandonar um livro que se está escrevendo. Às vezes a gente o retoma, como foi o caso de A confissão, às vezes não. Faz parte. O escritor precisa aprender a rasgar também.
Em No país do presente, além de comentar livros de algumas revelações da literatura brasileira, você analisa obras de autores consagrados (dentre eles, Lygia Fagundes Telles, Luis Fernando Verissimo, Antonio Torres, Chico Buarque, Rubem Fonseca...), e lembra que seria pouco produtivo separar os novos dos consagrados, para valorizar ainda mais o diálogo do novo com o antigo. Consagrado ou não, o que mais costuma te dar vontade de fazer uma resenha, de fazer a crítica de um livro?
Isso varia muito. Às vezes me dá vontade de resenhar porque é um autor de que gosto, do qual já li outros livros. Às vezes é porque se trata do segundo livro de um autor jovem, de cujo primeiro livro gostei (muito ou apenas um pouco) e quero ver como se saiu numa segunda aventura. Às vezes me atrai o gênero do livro, ou o primeiro parágrafo. Às vezes fico curioso porque li uma crítica positiva do livro, escrita por alguém que respeito, e dá vontade de conferir. E por aí vai.
Mais uma vez você: "Estudar a produção ficcional no Brasil que entra pelo século XXI implica saber que a ficção produzida atualmente pelos escritores mais experientes se alimenta da mesma fonte em que bebem os iniciantes: a linguagem da televisão, da publicidade, do cinema, da Internet, ou da própria tradição literária, não só brasileira". Todos bebem na mesma fonte, mas cada um a digere de um modo diferente, certo?
Claro, você tem razão, sempre é assim. Caso contrário, todos escreveriam sobre a seca do nordeste, por exemplo, do mesmo jeito, e aí não teríamos diferença entre Jorge Amado e Graciliano Ramos.
Novo trecho de No país do presente: "Talvez seja importante dizer que este livro não tem nem o desejo de, nem a competência para, se transformar em cânone, de modo que deve ser tomado apenas como um apanhado de sugestões de autores e obras. Caberá ao leitor, em última instância, eleger ou não como suas as leituras que foram minhas, e que, acredito, possam de algum modo servir ao interessado em saber a quantas anda nossa ficção hoje". Mais do que um livro de saber, você fez um livro de prazer. Então, entre o saber e o prazer, afinal, a quantas anda a ficção brasileira hoje?
Fico muito feliz em saber que você achou isso, que é um livro de prazer. Quanto à segunda pergunta, é difícil responder em poucas linhas. A idéia é que o próprio leitor tire suas conclusões, após ter lido o ensaio introdutório e as 65 resenhas que compõem o livro. De todo modo, acredito que a ficção brasileira produzida hoje é de alta qualidade, seja pela presença de novos e talentosos autores, seja pela performance cada vez mais apurada de alguns mestres.
Na primeira resenha analisada, você fala sobre o diálogo de linguagens presente no romance, e escreve: "É da ambigüidade que se alimenta a narrativa contemporânea". Em que sentido a ambigüidade mais alimenta o seu trabalho de autor?
Para mim, o texto literário deve ser sempre um artefato fabricador de ambigüidades. É essa, para mim, a função da literatura. Não a de ensinar, não a de provocar revoluções, mas a de dar alimento para a imaginação.
Em uma análise que faz de um livro do Luis Fernando Verissimo, você diz assim: "O ensaísta e escritor argentino Ricardo Piglia afirmou certa vez que entende a crítica como uma variante do gênero policial. Segundo Piglia, o crítico é como um detetive que tenta decifrar um enigma, ainda que não haja enigma. É um aventureiro que se move entre os textos em busca de um segredo que, às vezes, não existe. Nesse sentido, o prazer da crítica - ou, de um modo geral, da leitura - estaria não exatamente num objetivo final, o de desvendar o mistério, mas nas próprias conjecturas, nas formulações possíveis". Será que o mais saboroso de um mistério é procurar por ele?
Encontrar a solução de um mistério também é prazeroso, sem dúvida, mas eu quis chamar a atenção, ao citar o Piglia, para o fato de que algumas pessoas tendem a confundir literatura com pedagogia ou, na pior das hipóteses, com livros de auto-ajuda, quando na verdade literatura é outra coisa. Não há uma "mensagem" a ser buscada no texto, pelo menos no bom texto literário. Portanto, o crítico que busca encontrar a verdade, a interpretação absoluta, única, está equivocado desde o princípio e sua leitura será o que eu chamaria de leitura de conteúdo, que é aquela que sai destrinchando o texto à procura do que "o autor quis dizer", do recado ideólogico, do ensinamento ou seja lá o que for. Não há forma mais eficaz de assassinar uma ficção do que obrigá-la a dizer a verdade. É uma espécie de tortura, não é? Cabe ao crítico, a meu ver, ficar atento ao processo, ao modo como o autor vai construindo pouco a pouco a sua frase, montando seu castelo (firme e ao mesmo tempo sempre prestes a desmoronar), ao jeito como arruma na história o que vem antes, no meio e depois, à precisão (ou não) com que vai desenhando seus personagens, etc. Nesse sentido, o crítico é o detetive de Piglia, ou alguém que faz jus às palavras de Borges, em um de seus evangelhos apócrifos: "Busca pelo agrado de buscar, não pelo de encontrar".
O que é mais misterioso na literatura para você?
A capacidade que tem de nos pegar e não largar mais.
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