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O LEITOR FINGIDO
Jornal O Popular (Goiânia), 25/04/2010
Entrevista concedida a Rogerio Borges
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O poeta é um fingidor. O leitor também?
Sim. Quando Fernando Pessoa, no poema já famoso, associa o poeta ao fingidor, está se referindo à capacidade do poeta de imaginar sobre o que é real (chega a fingir que é dor a dor que deveras sente), quer dizer, de lidar com o artifício (a arte) e ao mesmo tempo com a vida de cada dia. O leitor também vive nesse entrelugar, quando lê é levado a imaginar e muitas vezes a viver de novo – sempre de um modo diferente – coisas que já viveu e que agora retornam, pela mágica da literatura.
Em um dos ensaios, você coloca que o leitor é um enigma. O autor tem como decifrá-lo?
O autor, enquanto escreve, convive com um leitor virtual, um leitor que não é de carne e osso. O escritor precisa desse fantasma pra poder escrever, é ele que o guia. Depois do livro pronto, vem o leitor real, que vai pegar o livro, vai gostar ou não, vai criar suas próprias interpretações. O primeiro leitor o escritor consegue decifrar, caso contrário não conseguirá escrever uma linha. Mas o outro, o real, esse não, esse é pura incógnita.
Ler também é inventar? Isso não provoca uma certa ciumeira no autor quando o leitor inventa algo inimaginável para quem escreveu?
Depende. Se esse algo inimaginável tiver a ver com a história, se for de fato uma leitura criativa e não um delírio do leitor, o escritor não tem por que sentir ciúme, pelo contrário, deve se sentir realizado por ter conseguido despertar em alguém o desejo de ser inventivo.
Citando Umberto Eco, você pontua que o século passado mostrou haver uma relação dialógica forte entre texto e autor. Mas não há quem ache que estabelece esse diálogo sem ter a devida competência para tanto? Não há o "leitor" que não consegue "ler"?
Essa relação não aconteceu só no século passado, acontece desde sempre, desde que se criou o primeiro texto e que este foi lido. Sobre a outra questão, é importante sim que o leitor esteja preparado. E essa preparação nem sempre é de natureza intelectual, embora isso também ajude bastante. O leitor precisa estar preparado para dialogar com o texto, para desconfiar dele e, sobretudo, criar junto com ele. O leitor que não consegue ler não é apenas aquele que não consegue decodificar o texto mas aquele que quer tudo de mão beijada, aquele que quer ser “doutrinado” pelo texto. Aí não há diálogo.
Nas obras que você utiliza como exemplos há uma miríade de referências. O labiríntico Jorge Luis Borges, o suspense de Edgar Allan Poe, a sensibilidade de Clarice. Como o leitor pode não se perder em, para continuar com o Eco, "bosques da ficção" tão densos?
Não há como se perder. Foram autores que fui lendo vida afora, em épocas diferentes, com desejos diferentes e há lugar para todos, sem problemas.
Você acredita na "arte de não ler"? Até onde o instinto e não a técnica conta mais não só na escrita como na leitura?
No livro eu falo disso, da arte de não ler. Aí eu pretendia sobretudo desmontar esse mito de que o bom leitor é o que lê tudo. Não, não é. O bom leitor precisa saber escolher. Assim como um escritor não pode escrever tudo, já que seu ofício é muito mais de cortar do que o de acrescentar – quem se lança a escrever tudo é bem provável que não consiga escrever nada –, também o leitor deve exercitar o corte, até porque a vida é curta e os livros são muitos.
O que é ler: paixão, hábito, prática, exercício, vocação?
Tudo isso junto. E mais alguma coisa que não saberia definir.
Como você avalia o leitor da internet, que muitas vezes não tem essa prática fora dela? A rede ameniza ou agrava o problema do analfabetismo funcional?
Esse é um tema complexo, que não dá pra analisar aqui. O que posso dizer, muito rapidamente, é que a internet oferece ao leitor a diversidade, como nunca foi oferecido antes. Mas oferece também a mesmice, na mesma proporção. Cabe ao leitor, como disse, saber escolher o que ler. E essa escolha implica o risco, o perigo. Acho que o leitor que lê apenas na rede e não vê interesse nenhum fora dela está buscando não a diversidade mas a mesmice, quer dizer, a segurança de estar entre pares. A leitura não é isso, é uma aventura que pede coragem, ousadia, como a de, por exemplo, trocar um dia diante do monitor por uma tarde na biblioteca.
O escritor é hoje muito mais confrontado pelo leitor do que antes, sobretudo em ambientes digitais. Isso é bom ou é ruim? É inspirador ou intimidador?
Não sei se concordo. Houve várias épocas de confronto, sobretudo quando se tratava de questões morais. Quantos escritores foram confrontados por leitores indignados com um personagem, uma cena que consideravam ofensivos, imorais? Hoje ele é confrontado virtualmente mas houve épocas em que isso era cara a cara. O confronto – ou, melhor dizendo, o encontro - não é em si bom ou ruim. Pode ser maravilhoso, quando você encontra leitores que realmente leram seus livros e estão querendo conversar sobre eles. E pode ser uma chatice sem tamanho se o leitor quiser falar mais dele mesmo do que de literatura.
O leitor sonha o mundo construído pelo autor. E o autor, ele sonha o leitor que irá lê-lo?
Sim, o escritor escreve movido por uma imagem de leitor. O escritor sonha seu leitor. E o leitor sonhado (ou fingido) é a garantia de que o escritor vai conseguir chegar ao final do seu livro.
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