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MOSAICO LITERÁRIO
Jornal O Povo. Fortaleza, 05.11.2006
Entrevista concedida a Amanda Queirós.
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Ela sobreviveu à cultura de massas, à cultura das mídias e à cultura digital. Desde seu surgimento, a palavra escrita se consolidou como um dos elementos culturais mais resistentes. Mesmo a contragosto das previsões mais catastróficas, que pregavam o seu fim com o advento dos veículos de massa e do apelo crescente da imagem, ela conseguiu driblar as especificidades de cada era. Com a popularização da internet, a palavra se vingou. Dessa forma, ela se transformou no suporte primordial das informações contidas na rede, ganhando ainda mais força ao contribuir para a livre troca de idéias e para revelar novos escritores.
Neste início de século, no Brasil, a palavra reproduz-se em forma de ficção, romanceada em contos ou novelas. Nesse universo, não há mais modelos a serem seguidos, escolas estéticas nas quais embasar as criações literárias. O experimentalismo toma conta dos textos. A criatividade está livre e o desafio não é desafiar a moral ou quebrar paradigmas, mas realizar, simplesmente, uma "obra de fôlego".
Esse é diagnóstico do professor de literatura brasileira Flávio Carneiro, da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2005, ele lançou No País do Presente: Ficção brasileira no início do século XXI. O livro é um desdobramento da tese de pós-doutoramento do professor, realizada na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). São 65 resenhas que percorrem a literatura produzida no Brasil entre 2000 e 2004, numa amostragem do que vem sendo realizado pelos escritores contemporâneos. O trabalho acaba servindo como uma bússola para aqueles que pretendem se orientar em um universo criativo cada vez mais difuso.
Afinal, ao mesmo tempo em que a internet ajudou a divulgar as obras de novos autores, ela também contribuiu para dispersar essa produção. Assim, a dificuldade em garimpar esses talentos permanece. No entanto, para o professor, isso é o de menos - as possibilidades de abordagem e penetração continuam sendo mais amplas. Apesar de não ter originado nenhum novo gênero literário, a rede proporcionou um novo olhar sobre as obras realizadas no País. Em entrevista por e-mail ao Vida & Arte Cultura, Flávio aponta a preferência nacional pelo romance e mostra-se otimista com a diversidade temática encontrada hoje no Brasil.
Começo com uma pergunta semelhante àquela encontrada na orelha do livro No País do Presente, organizado por você. Como é possível definir a literatura brasileira produzida neste início de século? Quais são os temas e as inquietações dela?
Acho que o mais importante dessa ficção é o diálogo entre as diferenças. Houve, é claro, outros períodos em que a diversidade foi marcante, como no romantismo e no modernismo. Mas hoje o panorama é outro: não há conflitos entre as vertentes, entre este e aquele grupo, como nos períodos citados ou nas vanguardas de meados do século XX. Na ficção atual, os mais diversos estilos convivem num rico mosaico e é isso que acho interessante. Não temos mais grupos, escolas se batendo e alguns vêem nisso um sinal de letargia, apontando para o clima morno da nossa ficção nos dias que correm. Discordo. O que se vê são autores empenhados não em quebrar muros ou levantar bandeiras, mas em construir silenciosamente obras de fôlego. Os caminhos são diversos: o fantástico, o policial, a narrativa urbana e a rural (o que é uma grande novidade, este retorno ao campo), a interação entre literatura e internet, o diálogo da ficção com o ensaio etc.
O conto predominou nos anos 90. E agora? Que gênero é febre entre os escritores e por quê? Pode-se dizer que outros gêneros estão surgindo com a exploração dos usos da internet? De que forma o desenvolvimento e a propagação das novas tecnologias interage com a literatura?
A internet não chegou a criar nenhum gênero novo, mas apenas proporcionou um novo olhar, uma nova possibilidade de linguagem, mas o formato continua sendo o do conto e do romance. O interessante é que se resgatou, nos anos 80, 90, e mesmo hoje, um formato pouco cultivado entre nós: a novela. Talvez isso se deva ao próprio mercado editorial, que tem investido nesse modelo intermediário, entre o conto e o romance. Embora tenha havido grande presença do conto nos anos 90, o que vende mais ainda é o romance, quem sabe porque o leitor precise de uma narrativa mais longa para se envolver com o personagem, o que o conto não permitiria. E a novela, se por um lado barateia o livro (que fica mais curto), permite ao leitor o envolvimento que o romance permite. Quer dizer, a novela parece que veio ocupar esse espaço. Pense em toda a obra do João Gilberto Noll, e em alguns livros do Rubem Fonseca, do Sérgio Sant'Anna e de muitos dos novos autores. Ao contrário do que se diz por aí, não acredito que tenha havido assim tanta interação entre as novas tecnologias e a literatura, no campo específico do fazer literário. Há, como já disse, um diálogo com essas tecnologias, mas não chega a ser algo tão significativo assim. No campo da edição e da veiculação do texto literário, sim, houve mudanças.
Que novas linguagens puderam ser desenvolvidas a partir dessa interação?
Não acho que tenha sido desenvolvida nenhuma nova linguagem. Apenas os autores flertam com esses novos meios de comunicação. Veja por exemplo os blogs. Funcionam, mas acabam, nos melhores casos, virando livro impresso, como sempre se fez. Vejo cada vez mais os blogs como tentativas de autores iniciantes de chegarem ao livro no seu formato tradicional, publicado por uma editora e distribuído em livrarias e tal. Dificilmente um autor permanece no blog, criando uma linguagem específica. Em geral, eles partem daí para chegarem ao livro.
A livre distribuição de conteúdo proporcionada pela internet impulsionou a divulgação de um grande número de escritores. Ao mesmo tempo em que há muita divulgação, é mais difícil selecionar o material a ser consumido. Onde é possível encontrar os trabalhos dessas novas gerações? Como um bom escritor pode se destacar no meio dessa avalanche na produção literária?
Os trabalhos das novas gerações estão ou na própria internet, nos blogs, como disse há pouco, ou em pequenas editoras. Ou ainda nos suplementos literários. E alguns desses novos alcançam espaço em grandes editoras, que têm investido em autores iniciantes, como a Rocco, a Companhias das Letras ou a Record. Um bom escritor talvez não se destaque nunca, talvez sim. Não creio que haja uma fórmula. O importante é se aprimorar, é ter autocrítica, é trocar informações (com amigos, com outros escritores, com críticos e professores, se for possível) e ir seguindo adiante, sem querer explodir logo no primeiro livro. Acredito que as palavras mágicas sejam: trabalho, paciência e perseverança. Se tiver que ser, será.
No livro, você comenta que não há mais um grande movimento literário capaz de nortear os escritores. É uma época sem modelos, repleta de experimentação ficcional. Por que esse é um momento sem parâmetros para a literatura? O que deve vir depois desse período "pós-utópico", como diria Haroldo Campos?
O fato de não termos mais movimentos literários, com grupos, projetos e adversários bem definidos não é uma coisa ruim, como muitos pensam. Esses movimentos só foram possíveis em épocas em que havia forças conflitantes muito bem definidas. Eram épocas que, em certo sentido, viviam de uma situação maniqueísta. Capitalismo x Socialismo, Patrão x Empregado, Homem x Mulher etc. Hoje o contexto cultural é diferente. Existem, claro, a discriminação, a opressão, mas de forma diversa, mais sutil. Daí não caber mais, hoje, a idéia de ruptura como choque, a idéia de escândalo. Ninguém se escandaliza mais. E uma das conseqüências positivas dessa nova configuração cultural é o progressivo apagamento das diferenças entre alta e baixa literaturas. As vanguardas não eram assim, o modernismo não era assim. Lá, literatura popular era sinônimo de má literatura. Vender muito era sinal de má literatura. Hoje temos autores como o (Luís Fernando) Verissimo, por exemplo, que é popular e sofisticado ao mesmo tempo, o que é muito bom para a literatura. E acredito que não se trate de pensar o que virá depois do "pós-utópico". Acredito que o importante é investir numa leitura do presente, o que não deixa de ser uma grande aventura.
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