|
|
|
|
LITERATURA BRASILEIRA HOJE
Estado de Minas, 28.05.2005
Entrevista concedida a Carlos Herculano Lopes
|
|

|
Resultado do desdobramento de uma pesquisa de pós-doutorado e de publicações críticas em jornais e suplementos literários nos últimos cinco anos, o escritor e professor de literatura na Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Flávio Carneiro, acaba de lançar No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI (Editora Rocco), no qual faz um balanço do que foi a literatura brasileira no século XX, e tenta mapear o que está sendo produzido atualmente. Para realizar esse trabalho, ele selecionou 65 livros de autores, gerações, regiões e estilos variados. "Quanto ao critério de seleção das obras que foram analisadas, não cedi a apelos midiáticos e tampouco levei em conta o nome do escritor", afirma Flávio Carneiro, em entrevista ao repórter Carlos Herculano Lopes.
Como definir a ficção brasileira produzida no início do século XXI?
Acredito que o traço marcante dessa ficção é o fato de não termos mais, como nas vanguardas do século XX, uma prática de combate. Não há grupos, não há projetos coletivos, não há um adversário definido. Os modernistas de 22 combatiam o "bom gosto" burguês, estampado sobretudo na poesia parnasiana, assim como os romancistas de 30 faziam da literatura uma arma contra os desmandos políticos dos senhores de engenho. Nos anos 70, o inimigo é a ditadura militar e é contra ela que se escreve, forjando uma ficção que, no mais das vezes, fazia as vezes de reportagem, abrindo espaço para o que não podia ser dito nos jornais. Hoje a configuração cultural do país é outra, e já não há espaço para esses tipos de enfrentamento. O que, a meu ver, é muito bom. Se para o jovem escritor pode faltar uma referência, um modelo a seguir, por outro lado essa mesma ausência de referente pode significar uma saudável liberdade. E o resultado disso é uma rica variedade de tendências. Cada um pode seguir seu próprio caminho, sem patrulhas estéticas ou ideológicas. Há, por exemplo, a retomada do fantástico (gênero pouco cultivado entre nós), o jogo da reescritura (que tem rendido ótimos romances e contos), o diálogo com outras linguagens, em especial a da televisão (que substitui o cinema no gosto dos novos autores) mas também a da história, do ensaio, da mídia. E há também uma tímida volta ao campo, a cidades do interior, num fenômeno que mereceria mais atenção da crítica. Além de outras trilhas, como as do humor, da narrativa policial, do romance histórico etc.
Como se deu o processo de seleção dos autores e livros a serem enfocados no seu trabalho?
Em primeiro lugar, procurei ler o maior número de obras possível, o que não é fácil, convenhamos, já que se tem se publicado muito nos últimos anos. Também não me prendi apenas aos novos. Acho que, para quem deseja fazer um mapeamento da ficção brasileira atual, não é interessante se prender apenas aos autores iniciantes, mas tentar ver de que modo convivem os que estão começando agora e aqueles que já estão na estrada faz tempo, sem esquecer, ainda, os que estão no meio do caminho, ou seja, que começaram a publicar nos anos 80 e 90. Meus critérios foram a qualidade e a representatividade. Busquei um meio termo entre eles. Claro, são critérios relativos, mas todos o são quando se trata desse tipo de trabalho. Não cedi a apelos meramente midiáticos, tampouco levei em conta o "nome" do autor, seu lugar marcado em nossa tradição literária. Fiz a seleção que achei pertinente, e que na verdade é bem ampla: 65 obras. Quis que fosse assim, ampla e variada, para que o leitor pudesse ter à sua disposição um mapa mais detalhado, caso queira se aventurar por esse território.
Quais os temas que estão sendo mais explorados pelos escritores que surgiram entre as décadas de 80 e 90? Você acredita que essa é uma geração de "transgressores", como a chamou Nelson de Oliveira?
Pelo que já li na imprensa, nem o próprio Nelson acredita nisso. Foi uma estratégia de marketing, uma tentativa de colocar no mercado autores que ele considera de valor e que estavam sem espaço. Conceitualmente falando, não acredito na idéia de geração, e acho inclusive que ela é nociva para a ficção que se faz hoje, justamente porque "geração" sugere certa marca de grupo, certa uniformidade, e a grande riqueza da ficção atual é não ser uniforme, é ser múltipla. É possível apontar certas afinidades entre os autores, sem dúvida, e, no caso daqueles surgidos nos anos 80 e 90, continua prevalecendo a temática urbana (com algumas poucas mas significativas exceções), ligada a violência, drogas, sexo etc. Há também alguns autores trabalhando bem com os variados processos de reescritura, retomando momentos ou obras importantes de nossa história literária. Mas o que acho importante dizer é que não cabe, hoje, insistir num conceito que atende apenas a interesses da mídia ou daqueles que gostam de soluções fáceis. Para se falar seriamente, criticamente, em "transgressão", é preciso antes de mais nada entender que o conceito muda de acordo com a época. Os novos historiadores, por exemplo, já sabem que não cabe mais falar em grandes eventos, grandes rupturas, mas sim nas miudezas, nas particularidades do cotidiano, por exemplo. Do mesmo modo, tomar como parâmetro, hoje, o que era transgressão para os modernistas, para as vanguardas - guiadas pelo efeito do choque, do escândalo - é, para mim, uma grande pobreza.
Vejo muita gente por aí dizendo que não há mais novidade, que hoje não há mais "transgressão". São pessoas pouco atentas ao que ocorre à sua volta, que estacionaram nos anos 20, 30 ou 60, buscando na atualidade o que a atualidade não tem mais para oferecer e, ao mesmo tempo, deixando de ver, nessa mesma atualidade, o que ela tem de mais criativo, que é exatamente aquilo que eu chamo, no livro, de "transgressão silenciosa" - aquela que não faz propaganda de si mesma, que vai se revelando nos detalhes, nas fissuras, de modo firme mas sem alarde. Para se ter uma idéia do que é isso, basta pensar em dois modos diferentes de transgressão operadas no século XX por dois poetas: Oswald e Bandeira. A ficção atual está mais para Bandeira, mas muita gente procura encontrar (ou ser) Oswald. Fazer o quê?
É possível se vislumbrar como estará a obra desses autores daqui a 20, 30 anos?
Acredito que não. De todo modo, seria um exercício bem interessante. Há um ensaio do Nelson Brissac Peixoto, em parceria com Maria Celeste Olalquiaga, chamado "O futuro do passado", que defende a idéia de que falar do futuro (no caso, eles tratam de filmes de ficção científica) é de certo modo falar do presente. O modo como sonhamos nosso futuro diz muito do que somos no presente, não é? Então talvez fosse uma bela aventura responder à sua pergunta com um texto de maior fôlego. Um dia, quem sabe.
Quais foram os grandes romances brasileiros do século XX?
Toda lista desse tipo é necessariamente incompleta, e é natural fazer uma hoje e mudá-la amanhã. De todo modo, diria que a ficção brasileira do século XX deu mostras de grande vitalidade ao produzir obras como "Macunaíma", "Vidas secas", "Grande sertão: veredas", "Crônica da casa assassinada" (de Lúcio Cardoso), para ficar nos clássicos. Nos anos 80 e 90, eu destacaria "O quieto animal da esquina", do Noll, "A grande arte", do Rubem Fonseca, "Um crime delicado", de Sérgio Sant'Anna, "Em liberdade," de Silviano Santiago. Mas certamente há outros romances importantes. E tem ainda os contistas, claro, que formam um belíssimo time.
|
 |
|
|
|
|
|
|