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INCURSÃO PELO ROMANCE POLICIAL
O Popular, 18.08.2002
Entrevista concedida a Nádia Timm
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"Cada livro é uma nova batalha", diz Flávio Carneiro, por telefone. O escritor goiano vai lançar O Campeonato, terça-feira, na Livraria da Travessa de Ipanema, no Rio de Janeiro, onde reside há 20 anos. O seu primeiro romance policial também vai ganhar noite de autógrafos em Goiânia, na Fundação Jaime Câmara, no início de outubro. Com seis livros publicados e vários prêmiros, o autor, que começou a publicar aos 24 anos de idade, pontua, em entrevista a O Popular, questões ligadas à produção do romance policial no Brasil e no mundo. Professor de literatura, Flávio Carneiro, que não esconde a ligação afetiva com Goiás, fala sobre os rumos da literatura contemporânea e faz críticas aos livros de Paulo Coelho, agora imortal da Academia Brasileira de Letras.
Os personagens de O Campeonato são leitores vorazes e as citações do mundo literário confundem-se com a realidade. Que relação há entre o escritor e o professor de literatura?
Escrever e ensinar são duas coisas que não combinam. Quando escrevo, não quero ensinar nada. Quero apenas contar uma história, da melhor maneira possível. Claro que essa história pode melhorar a vida das pessoas, mas isso é conseqüência.
As citações estão integradas ao enredo...
O escritor que parte do princípio de que a literatura tem algo a ensinar devia mudar de profissão, ou então escrever livros de auto-ajuda. Se há citações do mundo literário no meu romance é porque o personagem é um leitor, e as citações aparecem. Não que eu queira dar uma de professor disfarçado de romancista, mas porque achei interessante o personagem ser assim.
Que lição a literatura proporciona?
Acho que o professor de literatura devia aprender algo com a própria literatura, aprender a lidar com o imprevisível, por exemplo. Então, o meu lado professor tem muito do lado escritor, dou aula pensando em trabalhar o imaginário dos alunos e não em dar respostas prontas. Isso não é nada fácil, porque os alunos muitas vezes preferem respostas prontas, mas aí já é outra história.
Você substitui a figura clássica do detetive por um jovem desempregado, com dificuldades afetivas. A alteração da personagem típica do romance policial tradicional é característica da nova geração? Por que ocorre?
A mudança do perfil do detetive clássico para o moderno surge já nos anos 30, nos Estados Unidos. É a época da grande crise americana, da depressão econômica, da lei seca, da perseguição política etc., e toda essa atmosfera acaba tornando impossível a existência de um detetive como Sherlock, por exemplo, em cujas histórias o bem sempre vence o mal. No romance polcial americano dos anos 30, o detetive é um sujeito beberrão, que fuma muito, conhece os marginais e as prostitutas, vive num quarto imundo num bairro pobre. É a época de outro tipo de detetive, o Sam Spade, criado por Hammett.
E no Brasil?
No Brasil, a narrativa policial de boa qualidade surge apenas nos anos 70, com Rubem Fonseca, e, é calro, o modelo de detetive será justamente Spade, não Sherlock, já que as condições do país tinham, e têm, muito mais a ver com o ambeinte americano dos anos 30 do que com a Inglaterra vitoriana de Sherlock.
Garcia-Roza é best seller. Como avalia o boom do romance policial tupiniquim, no final dos anos 90?
A narrativa policial sempre teve um grande número de leitores, desde o seu surgimento, com Poe, no século 19. Na ficção dos anos 80 pra cá, a narrativa policial ganhou novo contorno, com histórias que buscam atingir dois níveis de leitrua: o do leitor comum, interessado apenas no enredo, e o do leitor mais sofisticado, que busca também um texto mais inteligente e criativo, e às vezes mais culto também.
Quais exemplos de linguagem apurada?
Autores como Rubem Fonseca, Garcia-Roza, Luis Fernando Verissimo, Rubens Figueiredo, entre outros, descobriram que a ficção policial oferece essa riqueza: ser inteligente sem ser elitista. Jorge Luis Borges, um escritor argentino que é, sem dúvida, uma das minhas principais referências, já sabia disso há muito tempo. É dele um conto policial nesse estilo, simples e genial, escrito nos anos 40: "O jardim de caminhos que se bifurcam". Borges, e também Poe, são autores sofisticados, têm uma obra carregada de erudição, e no entanto escreveram contos policiais. A produção atual segue por aí, com os necessários ajustes de nossa épcoa, claro.
Por que escolheu este gênero?
Sempre gostei de narrativa polical, sobretudo a praticada pelos autores citados. No meu livro Da matriz ao beco e depois (Rocco, 1994), há um longo conto policial. Sempre quis, um dia, escrever um romance policial, só estava esperando a história chegar. Ela demorou um pouco, mas chegou.
Qual a sua relação com Goiás?
Nasci em Goiânia e duas ou três vezes por ano passo uma temporada na casa dos meus pais, que moram aí, e também meus irmãos, tios, sobrinhos etc. Alguns parentes moram em Brasília. Tenho uma ligação muito forte com Goiás e, em especial, com Goiânia. Sou meio como o índio do poema da Cora Coralina, "O palácio dos arcos", que vivia dividido entre duas culturas, no meu caso a de Goiás e a do Rio, pra onde vim em 81. A gente acaba tendo que optar por viver nessa ou naquela cidade, e optei pelo Rio por questões profissionais. Depois acabei fazendo amigos, me casei, minha mulher tem um filho lindo que considero também como meu filho, e então hoje tento conviver amigavelmente com as duas cidades, já que não posso nem quero abrir mão de nenhuma delas.
Acompanha a produção literária em Goiás? Qual sua avaliação?
Tenho acompanhado pouco. Conheço poucos autores, os já canônicos Bernardo Élis, Cora Coralina e José J. Veiga, e os de gerações mais recentes, como o Dilermano, o Brasigóis, o Goiamérico, o Miguel Jorge. Gosto muito de todos eles, e acho que fazem uma literatura de alto nível, para além do regional. Infelizmente, o mercado editorial privilegia centros maiores, dificultando o acesso do grande públcio aos livros desses autores e de outros, da novíssima geração, que confesso não conhecer ainda.
O que achou de Paulo Coelho ser eleito imortal?
Normal. A Academia Brasileira de Letras nunca foi uma casa exclusiva de grandes escritores. Aliás, nem é preciso ser escritor para ser acadêmico. Getúlio Vargas, por exemplo, é da ABL. É um grupo bastante eclético, e fico imaginando o que Guimarães Rosa teria a conversar com o Sarney, por exemplo. Paulo Coelho não é um escritor, no sentido de ficcionista. A ficção, para ele, é pretexto para ensinamentos filosóficos. Não gosto de livros assim. A literatura não deve servir para outros fins que não seja a leitura pura e simples. Não deve servir para ensinar nada, não deve servir para levar alguém a votar nesse ou naquele partido, a ser ateu ou crente, ou para provocar uma revolta armada, nada disso.
O quanto o engajamento prejudica a qualidade?
O Paulo Leminski dizia que a poesia é um inutensílio. Concordo com ele. A literatura não serve pra nada e, justamente por não ter uma função prática, é que ela é imprescindível, fundamental. Fico meio deprimido quando vejo tanta gente gostando de Paulo Coelho, não porque ele seja ruim. Acho que ele é ruim, escreve muito mal. Mas não é por isso, tem muita gente por aí escrevendo mal e nem por isso me entristeço. O que me chateia é que ele usa a literatura para passar mensagens, para ensinar alguma coisa, e isso é o que pode haver de pior para a literatura. Se você quer matar a literatura, coloque-a a serviço da moral, da ética, da política ou do que quer que seja. É um processo de emburrecimento do leitor, de adestramento, de absoluta imbecilização. É triste ver a literatura servindo a esse propósito.
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