Flávio Carneiro


Entrevistas


LITERATURA & FUTEBOL
Entrevista concedida a Manoella Barbosa, para o Goethe Institut (São Paulo), fevereiro de 2014.

1) Flávio, comecemos com um poema de Carlos Drummond de Andrade:
"Futebol se joga no estádio? Futebol se joga na praia, futebol se joga na rua, futebol se joga na alma"
Você concorda com ele? Até que ponto e por qual razão?
Um dos motivos de o futebol ser um esporte tão popular, não só no Brasil mas mundo afora, é que ele pode ser jogado em qualquer lugar. Até em saguão de aeroporto já vi gente jogando bola, pelo menos até a hora de o segurança acabar com a brincadeira. E o terreno nem precisa ser plano, pode ser uma ladeira, uma calçada torta, uma subida de morro. Além disso, não é necessário nenhum material esportivo especial, joga-se com a roupa do corpo, descalço mesmo. Aliás, nem de bola você precisa! Quer dizer, bola de verdade, pode ser uma tampinha de garrafa, um pedaço de papel embolado. E, claro, jogando desse jeito, em qualquer lugar, em qualquer tempo - uma das melhores lembranças que tenho da infância é a de jogar bola na chuva - o futebol vai se estender para outros campos, invadindo a alma das pessoas.

2) Qual é, na tua opinião, a nação com o melhor futebol? Por quê?
Depende de que futebol a gente esteja falando. Há o futebol oficial, regulado pelas federações nacionais e a FIFA. Nesse aspecto, o Brasil já foi hegemônico, por décadas, mas hoje divide espaço com outras nações, como Espanha e Alemanha, entre outras. Mas há também o futebol amador, o futebol de várzea, o futebol das crianças, há todo um outro mundo do futebol que não se vê na televisão. E é sem dúvida um mundo mais fascinante que o do futebol oficial, principalmente nos dias de hoje, de tanta mercantilização do esporte. Esse futebol amador está espalhado pelo mundo todo e é em torno dele que estão as melhores histórias. Meus contos sobre futebol são sempre tirados daí, desse mundo da bola que não ocupa as páginas do jornais, que vive à sombra das manchetes e guarda uma riqueza imensa, oferecida todos os dias, de graça, a qualquer um que queira parar e ver.

3) Em época de Copa do Mundo, para qual time você torce? E depois deste time ser desqualificado? Explique-se.
Torço pelo Brasil, claro. Mas só depois da primeira fase. Na primeira fase, assisto apenas, sem torcer muito. E torço contra a Argentina, sempre. Uma teoria que tenho, já comprovada pelos doutores em futebol, é que o torcedor de verdade torce mais pro seu time do que pela seleção brasileira. Torço pro Botafogo até em campeonato de futebol de botão! Agora, pelo Brasil, só mesmo em jogos decisivos. Acho que isso acontece porque o torcedor acompanha seu time no dia-a-dia, a cada semana, enquanto o Brasil só joga pra valer de quatro em quatro anos. Não dá pra ter muita afinidade com um time que você só vê jogar de verdade a cada quatro anos.

4) "Sem um bom contador de histórias, o jogo não vai ter a mesma graça". Permite-me tirar essa passagem do teu site, referente ao livro "Passe de Letra". Fale-me um pouco sobre esse projeto.
Não é um projeto, faz parte de uma crônica que escrevi nesse livro. Eu quis dizer que, assim como na literatura, num jogo existe também um narrador, que é aquele sujeito que, no rádio ou na televisão, vai contando a história do jogo, sempre num estilo muito pessoal. Todo mundo está assistindo ao mesmo jogo, mas o narrador dá àquele jogo um tempero, um toque diferente, que faz parte de todo o espetáculo.

5) Flávio, qual é a importância das rivalidades no futebol para o imaginário coletivo? Como um escritor pode-se valer disso?
Precisamos das rivalidades. O futebol é uma paixão e não há paixão sem rivalidades. Toda história passional, na literatura ou fora dela, tem rivalidades. Há sempre, nos romances passionais, alguém disputando com outro a posse do ser amado. No futebol não haveria de ser diferente.

6) Brasil vs. Argentina. O que falar/escrever sobre isso? Como abordar essa temática, e, por quê?
São as duas maiores escolas de futebol da América e estão entre as melhores do mundo. É natural que haja rivalidade. A palavra "rival", se não me engano, vem do latim e significava originalmente aquele que habita a outra margem do rio. O rival é sempre alguém que está por perto, na outra margem, dividindo com você as mesmas águas, disputando com você a posse daquelas águas, objeto de desejo de ambos os lados. No nosso caso, já foi o Uruguai, mas a Argentina é nossa maior rival.

7) Vale a pena escrever sobre futebol? Por quê?
Sim, vale. Por quê? Não sei, talvez porque valha a pena escrever sobre tudo aquilo em que você acredita. O escritor tem que ser sempre sincero consigo mesmo, sempre escrever sobre aquilo em que de fato acredita. Se ele não fizer isso, vai estar enganando não apenas a si mesmo como a seu leitor. E leitor enganado não perdoa.

8) Como foi a tua experiência na Alemanha durante a Copa do Cultura em 2006, onde você atuou como curador de literatura?
Fui convidado pelo Ministério da Cultura, na gestão do Gilberto Gil, para fazer a curadoria de um projeto que pretendia aproveitar a Copa da Alemanha para divulgar a cultura brasileira pelo mundo. Fui o curador na área de literatura e montei uma programação para todo o ano de 2006, com vários encontros com escritores, conferências, leituras, sempre em Berlim. Estive em Berlim duas vezes em 2006, acompanhando o projeto, uma delas no início da Copa, e foram duas viagens inesquecíveis. A cidade em si, que consegue conciliar alta tecnologia e profundo respeito à natureza, numa combinação que nunca vi em nenhum lugar, me impressionou muito. Cheguei a pensar que poderia perfeitamente morar lá. E estive o tempo todo trabalhando em parceria com o pessoal da Casa das Culturas do Mundo (Haus der Kulturen der Welt), que desenvolve projetos maravilhosos, relacionados sobretudo a culturas não-europeias, e que a imprensa mundial batizou de "a catedral cultural da Copa", por seu desenho arquitetônico e por suas ações na área da cultura. Aprendi muito com esse trabalho.

9) Fale um pouco sobre o conto "Penalidade Máxima".
Foi um conto que escrevi para a Revista Ficções e depois entrou numa antologia clássica de contos de futebol, 22 contistas em campo, organizada pelo Flávio Moreira da Costa, e também em um número especial da Revista Bravo, organizado pelo Marcelo Moutinho. Depois o conto foi publicado em inglês e alemão, numa edição especial do Instituto Goethe do Rio, dirigido pelo Alfons Hug. A história é longa e se passa, na verdade, em poucos segundos. Na final de um campeonato de várzea, aos 44 do segundo tempo, acontece um pênalti. O batedor, um garoto ainda, coloca a bola na marca. O juiz apita. Entre o momento do apito e momento da batida, se passa o conto. Toda a história acontece na cabeça do jogador, em segundos desfilam na sua memória todas as cenas que o levaram a estar onde está, naquele campo, diante daquela bola, pronto para bater o pênalti. É, sem dúvida, uma história de rivalidades.




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