Flávio Carneiro


Entrevistas


ENTREVISTA COM FLÁVIO CARNEIRO
Jornal Tribuna do Planalto (Goiânia), 24/08/2008.
Entrevista concedida a Raphaela Ferro.


Há quase 30 anos morando no Rio de Janeiro, o goianiense Flávio Carneiro já não se acostuma facilmente com a capital goiana. O tempo seco difere da umidade de Teresópolis, cidade carioca em que vive. Flávio, hoje crítico literário, pós-doutor, professor universitário e escritor consagrado, saiu de Goiânia aos 18 anos mais para viver novas experiências do que para fazer o curso de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), onde hoje é professor. Em entrevista ao suplemento Escola, o escritor relembra o primeiro incentivo vindo do pai e da mãe com a contação de histórias e a encadernação amadora de pequenas histórias reescritas por ele. Independente da faculdade, ele confessa que foi a vontade de ser escritor que o levou ao Rio de Janeiro. O jovem goiano se transformou em um escritor que habita diversas áreas da literatura. Ele já escreveu para crianças, jovens e adultos e é autor de novelas, romances e contos. Para o próximo ano, revela que pretende lançar um livro de crônicas sobre o futebol.

Quando morava ainda em Goiânia, você já escrevia?
Eu escrevia, mas não tinha publicado nada. Eu tinha ganhado um prêmio no Gremi de Inhumas, [Flávio foi selecionado em primeiro lugar na categoria Literatura (Contos) do 16º Festival das Artes Gremi]. Era um concurso importante no final dos anos 70. Muitos autores que hoje estão publicando aqui foram premiados por ele. Foi uma motivação. Eu já tinha alguma coisa pronta, mas não tinha nada publicado. Fui fazer faculdade de Letras na UERJ. Em 86 publiquei meu primeiro livro, chamado "Acorda, Rita". Fiz o mestrado, o doutorado. Fui seguindo a carreira acadêmica paralelamente à carreira de escritor. Comecei a publicar também para adultos, livro de contos, dois romances, livro de ensaios.

Em Goiás, você teve incentivo para ser escritor?
Eu tive muito incentivo por parte dos meus pais, mas era um incentivo indireto, o que é uma coisa curiosa. Eles não tinham livros em casa. Meus pais nasceram em fazenda, vieram para Goiânia já com 20 e poucos anos. Minha mãe era professora primária e meu pai sempre foi um grande contador de histórias. Até hoje ele é. Então, mesmo não tendo livros por perto, eu sempre tive apoio. Eu gostava de ouvir as histórias do meu pai e de reescrevê-las, assim como as histórias que eu ouvia na escola. Na minha cabeça, eu achava que eu era o autor [risos]. Meu pai e minha mãe incentivavam muito isso. O contato com os livros foi um pouco por minha conta. Eu me lembro que meu pai era professor de datilografia, ele era muito orgulhoso porque tinha um método para "bater" máquina rápido. Ele datilografou as minhas primeiras histórias. Nós fazíamos uma encadernação como se fosse um livrinho. Minha mãe ajudava. Na época, eu não pensava que fosse um tipo de incentivo. Era só uma brincadeira, mas passado muito tempo eu acho que veio parte daí. Sem dúvida, nas escolas que estudei, eu tive sorte de ter bons professores de redação. No Rio, eu também tive muita sorte de pegar um grupo de colegas na Faculdade de Letras que gostavam muito de escrever e até hoje ainda lidam com isso.

A mudança de Estado foi imprescindível para a carreira de escritor?
Muita gente nunca saiu da própria cidade e criou uma carreira literária, e outros saíram e voltaram. Tem o poeta Manuel de Barros, que mora em Mato Grosso, em uma cidade pequena. Tem também o Raduan Nassar, grande nome que passou praticamente a vida inteira no sítio, agora nem escreve mais. Hoje em dia, inclusive, é comum o escritor nem sair tanto, pela internet mantém o contato. É difícil saber se isso foi realmente fundamental. Eu acho, sem dúvida, que conheci uma experiência de vida que talvez eu não tivesse, porque eu fui [para o Rio] sem conhecer ninguém, como aventura. Por isso eu passei no vestibular de uma escola pública, para não ter gasto. Fui morar na casa do estudante, também não paguei moradia. Fui com a cara e a coragem mesmo. Em uma época em que o Rio ainda não era a cidade violenta que é hoje. Fiquei muito encantado com tudo e guardo até hoje lembranças muito boas dessa época. Então, da parte de formação do ser humano, no meu caso, foi muito importante. Também pelo contato com outras formas de cultura que talvez eu não tivesse aqui. Um contato maior com escritores, com cinema, com teatro. É um centro cultural maior.

Quanto aos escritores, quais são as suas referências?
Cada vez que essa pergunta é feita, as referências mudam, porque às vezes você está lendo um autor e fala dele. Então a resposta é variada. Autores que sempre me lembro deles... Machado de Assis é uma grande referência para o público brasileiro, tanto como romancista quanto como ensaísta. Na área de ficção tem o Graciliano Ramos, outro autor que eu considero um mestre na economia de linguagem. Dos mais recentes, o Rubem Fonseca, com quem eu dialoguei em um romance policial meu publicado em 2000. Estrangeiros, eu gosto muito do argentino Jorge Luís Borges, outro argentino que é o [Júlio] Cortázar e o italiano Ítalo Calvino. Todos eles têm um apego muito forte ao imaginário. Talvez o Graciliano Ramos seja o que mais se prendeu ao retrato de um determinado lugar, mas esses outros têm em comum isso: a fantasia, o ato de criar lugares imaginários. O que me interessa muito como leitor é esse aspecto da aventura que a narrativa traz. Eu nunca fiquei envolvido com documento, com aspecto social, com a missão da literatura. Para mim, isso nunca foi uma coisa prioritária. Sempre achei que esses são trabalhos que o cidadão faz. O escritor deve estar antenado com outros tipos, com a sua matéria-prima que é a linguagem, a fantasia. Hoje eu tenho contato com muitos autores que são da minha geração. Luiz Ruffato, Adriana Lisboa, com quem eu fui casado, Adriana Lunardi... São muitos autores. Luís Fernando Veríssimo, que eu conheço pessoalmente e também admiro muito.

Como é o processo de produção no momento em que você escreve um livro?
Eu tenho uma preocupação muito grande em não passar nenhuma mensagem, não ocupar o lugar do leitor. Existe o espaço do autor, que é uma vivência muito solitária, ele está cercado de fantasmas, autores que leu e com quem conviveu. Mas ele, materialmente, está sozinho. Depois que o livro é publicado, que ele vai para a rua, o livro é do leitor. Se você quer continuar sendo pai do livro o tempo inteiro, você começa a colocar no livro o modo como você quer ser lido. Isso eu acho errado. Você tem de se desvencilhar do livro e deixar espaço para que o leitor o complemente. É minha preocupação, quando eu sinto que eu estou dando certa interpretação, que aquilo pode ser lido como mensagem, eu dou um jeito de desfazer e abrir portas para a imaginação do leitor.

Você passeia por várias áreas da literatura. Quando começa a escrever, você já sabe qual tipo de texto será produzido?
Às vezes a idéia vem de um fato do dia-a-dia, eu vi na rua alguma coisa ou lembrei de um episódio qualquer. A história já vem com uma cara para criança ou para adulto. Eu imaginei o homem que seqüestra uma mulher, ele a prende numa cadeira e vai contar uma história. Para mim, é difícil pensar nisso para crianças. Em uma outra, há uma cidade imaginária e uma menina de 12 anos que vai buscar o significado dessa cidade. A própria história pede um formato.

Você tem alguma preocupação quando escreve para crianças?
Qualquer preocupação que você tenha que não seja com a palavra, com a matéria-prima, com o fato de criar um mundo imaginário, vai lhe levar para o campo da Pedagogia, que é o que eu não quero. Tenho de me preocupar o tempo inteiro em não ser o crítico, em ser o ficcionista. A única maneira que eu vejo de fazer isso é abrir as portas todas para o leitor e não querer ensinar nada. Vou lançar um livro aqui em Goiânia, em outubro, chamado "A Distância das Coisas", que é a história de um garoto de 14 anos. É um livro juvenil, mas que fala da morte de pai e mãe, de mentira. Uma série de temas que seriam pesados. Eu procurei não tirar nenhuma conclusão disso, não falar "você deve gostar da sua mãe, do seu pai"... E eu espero que o professor respeite esse caráter não-pedagógico quando o livro for para a sala de aula.






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