Flávio Carneiro


Entrevistas

ENTRE A FICÇÃO E A CRÍTICA
Jornal do Brasil, 27.06.2005
Entrevista concedida a Cláudia Nina


Professor de literatura brasileira da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), autor de ficção (O campeonato, Lalande, entre outros) e ensaísta, Flávio Carneiro é também um raro exemplo de crítico que consegue escrever para um público amplo, fora dos muros das universidades, sem com isso empobrecer o texto. Pelo contrário. Flávio não parece ter a pretensão de dificultar demais a leitura de suas resenhas só para parecer erudito. Nos textos críticos publicados nos suplementos literários do país, o autor revela grande capacidade de fazer a ponte entre o leitor e as reflexões teóricas nascidas muitas vezes em sala de aula. Uma seleção deste material foi reunida em No país do presente: ficção brasileira no início do século 21 (Rocco), desdobramento de uma pesquisa de pós-doutoramento e da atividade crítica regular de Flávio nas páginas dos jornais. São resenhas sobre obras de ficção brasileira publicadas nos últimos cinco anos, numa seleção que reúne tanto nomes já consagrados, como Rubem Fonseca, Luís Fernando Veríssimo e Nélida Piñon, como autores da nova safra, como Joca Reiners Terron, Adriana Lunardi e João Carrascoza. A introdução, intitulada ''Das vanguardas ao pós-utópico: ficção brasileira no século 20'', contextualiza os textos que seguem, todos sempre amparados por um sólido conhecimento literário. Para Flávio, ''uma das principais funções do crítico é apresentar a obra ao leitor de forma clara, precisa, buscando sempre um olhar original, um ponto-de-vista diferenciado, e também contextualizando a obra, dizendo que espaço ocupa no campo mais amplo da tradição e no panorama atual. Tudo isso ele pode conseguir na resenha'', diz.
Em No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI. que também pode ser lido como um guia da literatura brasileira contemporânea, Flávio Carneiro consegue certamente muito mais do que isso. O livro é aula aberta a qualquer leitor que se dispuser a participar de um delicioso diálogo crítico.

Você diz em seu livro que um traço marcante do momento literário contemporâneo é a ausência do embate entre forças conflitantes. Por um lado, isso é bom, pois permite a convivência pacífica de diversos estilos. Entretanto, há quem diga que falta ousadia. Não estaríamos vivendo uma certa acomodação em termos literários, com autores caminhando sempre espaços já trilhados, sem ousarem até mesmo um conflito maior?
O conceito de ousadia não é atemporal. Cada época define seus modos de transgressão. O que vejo hoje são alguns autores que pararam no tempo, que continuam acreditando nas formas de ruptura propostas pelo modernismo ou pelas vanguardas do século XX. E há outros que, embora pareçam acomodados, estão construindo o que chamo de "transgressão silenciosa", aquela que não faz alarde, que não chama a atenção para si mesma e no entanto vai reescrevendo, por dentro, antigos modelos. Não acho mesmo que falte ousadia. O que falta é leitura, da parte sobretudo de alguns escritores em início de carreira, que acreditam ser possível escrever sem ler, que na verdade ostentam esse paradoxo como se fosse uma bandeira. Essa postura sim, considero acomodada, retrógrada.
Os espaços reservados à crítica literária são exíguos hoje em dia. Como podem os críticos interferirem no processo da leitura mesmo atuando em limites tão estreitos?
O espaço da crítica sempre foi reduzido. O espaço da literatura, aliás, sempre foi pequeno, ainda que, há cem anos atrás, ser escritor tivesse mais status do que tem hoje. De todo modo, acredito que o crítico possa interferir no processo, por exemplo, se aprimorando no exercício da resenha, que atinge um número razoável de leitores. Acho o formato da resenha interessantíssimo e discordo radicalmente dos que a consideram um modo superficial de crítica. Se bem feita, com consistência, com seriedade, a resenha é uma forma de apresentação crítica do livro, um elo entre autor e leitor. Um das principais funções do crítico é apresentar a obra ao leitor de forma clara, precisa, buscando sempre um olhar original, um ponto-de-vista diferenciado, e também contextualizando a obra, dizendo que espaço ocupa no campo mais amplo da tradição e no panorama atual. Tudo isso ele pode conseguir na resenha.
Ler o contemporâneo dentro do contemporâneo é tarefa bastante delicada. Você teme equívocos futuros?
Acho que o crítico não deve se preocupar com equívocos futuros e sim com equívocos do próprio presente. Se analiso uma obra publicada recentemente, não me cabe dizer se ela vai "ficar" ou não, isso não é tarefa do crítico. Cabe a ele dizer como a obra pode ser lida hoje, em contraponto com o que foi escrito antes e com o que se escreve na atualidade, e é só com isso que ele deve se preocupar, com a qualidade de sua leitura, evitando equívocos como, por exemplo, desandar a falar da vida do autor, ou, o que é mais preocupante, querendo aparecer mais que o escritor cuja obra ele analisa.
Há autores que desprezam a anti-lineraridade em prol de uma narrativa ainda nos moldes clássicos, mesmo que tratando de temas atuais. Você acha que ainda há espaço para o narrador à la Balzac?
Acho. Um dos traços marcantes da ficção dos últimos vinte ou trinta anos - e não sou o primeiro a dizer isso - é o retorno do contador de histórias, do narrador que se preocupa em alinhavar fio por fio uma trama envolvente. Boa parte da ficção do século XX proporcionou um verdadeiro desmonte do enredo, de tal modo que escrever bem significou, nesse períodos, escrever de forma não-linear. Hoje o ficcionista sabe que é possível escrever uma história inovadora sem precisar desmantelar a trama.
Você faz uma distinção entre pós-moderno e pós-utópico. Poderia comentar?
O conceito de pós-utópico foi formulado por Haroldo de Campos e trata basicamente da poesia, mas me apropriei dele, aplicando-o à prosa, porque acho um conceito mais preciso que o de pós-moderno, que, além de muito amplo, se presta a confusões, como a de sugerir que vivemos aquilo que vem depois do moderno, o que seria um paradoxo. Para Haroldo, um período utópico só existe quando se tem três fatores: um grupo de autores consciente de sua função enquanto grupo, um projeto literário coletivo que contemple os anseios desse grupo, e um adversário definido. Assim, o romantismo talvez tenha sido nosso primeiro período utópico, a que se seguiram o modernismo, as vanguardas e, penso, também certa ficção engajada, nos anos da ditadura militar. Hoje não temos mais nem grupos nem projetos e o adversário, se existe, não tem um mas vários rostos. Justamente por isso é descabido falar em ruptura, em literatura de choque ou algo assim, porque vivemos uma outra época, pós-utópica. O que, a meu ver, é muito bom, porque dá ao escritor uma maior liberdade de ação, sem a necessidade de se filiar a esta ou aquela corrente e ser catalogado a partir de sua postura a favor ou contra determinada postura estética ou ideológica. Alguns acham que precisamos de modelos, que essa pluralidade de estilos só atrapalha. Eu não acho. Quem lida com literatura deve saber conviver com a dúvida, que é a matéria-prima da ficção.
Você está começando agora uma atividade nova: a de roteirista. Poderia falar dos novos projetos?
Escrevi dois roteiros que estão sendo filmados. Um deles é um curta, "A noite do capitão", passado na noite do jogo entre Brasil e Uruguai, na final da copa de 50. A história é centrada no Obdúlio Varela, capitão do Uruguai e grande nome daquele jogo, que sai pela cidade sozinho, vendo a tristeza que ajudou a construir. Escrevi o roteiro em parceria com o Adolfo Lachermacher, que é também o diretor do curta, com estréia prevista para o segundo semestre deste ano. O longa escrevi com a Adriana Lisboa, e se chama "Bodas de papel." Está sendo filmado no interior de São Paulo, com direção de André Sturm. É uma história com várias histórias dentro, o que sempre me agradou, e se passa numa cidade meio fantasma, cujos habitantes foram desalojados para a construção de uma hidrelétrica. Como o projeto não foi adiante, algumas pessoas decidem retornar à cidade, em busca de um passado e de um futuro que acabam se cruzando. Os papéis principais serão desempenhados pela Helena Ranaldi e pelo argentino Darío Grandinetti (de "Fale com ela"), dois atores que admiro muito.
E quanto à literatura?
Estou terminando um novo romance. A história é narrada por um homem que seqüestra uma mulher e a leva para uma casa, numa praia deserta. Lá, ele diz a ela que não lhe fará mal, e que a seqüestrou porque tem uma longa história para lhe contar. O romance é essa história, com passagens às vezes assustadoras, beirando o fantástico. No final o leitor fica sabendo por que o homem escolheu justamente aquela mulher para ouvir sua narrativa. O título, pelo menos por enquanto, é A confissão, e o livro deve sair ainda este ano, pela Rocco.




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