Flávio Carneiro


Entrevistas


CONVERSA COM O ESCRITOR FLÁVIO CARNEIRO
Revista Bula (www.revistabula.com.br), 27.02.2007
Entrevista concedida a Flávio Paranhos.


Flávio Carneiro nasceu em Goiânia, em 1962, e mudou-se para o Rio de Janeiro no início dos anos 80. Escritor, crítico literário, roteirista e professor de literatura, é um dos mais importantes autores dos anos 90. Em entrevista a Flávio Paranhos, ele fala de literatura, de cinema, de preferências, e não esconde a ligação afetiva com Goiás.

Sair de Goiânia te fez bem (quero dizer, para as carreiras acadêmica e literária)?
Sim. O Rio é um grande centro e me proporcionou a oportunidade de contato com professores, críticos e escritores que dificilmente eu conheceria se permanecesse em Goiânia. Mantenho ainda uma forte relação com a cidade, claro, mas para as carreiras acadêmica e literária acho importante uma temporada num centro maior, no país ou no exterior. É importante para a formação profissional (e mesmo existencial) do escritor e do professor.
Perdão, mas agora vai uma pergunta batida, mas (e por isso mesmo) inevitável: Ser professor da área de letras atrapalha ou ajuda?
Já atrapalhou, quando eu era mais jovem, com vinte e poucos anos. O curso de Letras te obriga a muitas leituras teóricas e críticas, além de te obrigar também ao estudo de disciplinas que talvez não te interessem tanto quanto a literatura em si ou outras mais próximas (por exemplo, a parte do curso em que tive que cursar matérias na Pedagogia foi pra mim foi uma experiência nada produtiva). Nesses momentos, você pode acabar criando uma certa auto-censura na hora de escrever, porque acha que precisa atender a todos aqueles pressupostos da teoria, da crítica etc. Mas depois passa. Hoje esse conhecimento me ajuda muito e é parte da minha ficção, sem dúvida.
Em sua resposta a Rogério Pereira, do Rascunho, quanto a suas influências literárias, você disse temer esquecer alguém. Citou Borges, Calvino, Paul Auster, Rubem Fonseca, Poe e Machado de Assis. Esqueceu alguém? Cortazar, talvez? E quanto a suas influências cinematográficas? Quais cineastas prefere? E aproveitando o gancho: cinema é arte menor do que a literatura?
Claro, poderia incluir Cortázar também. E o mineiro Murilo Rubião, nosso único grande contista dedicado inteiramente ao fantástico, gênero que me agrada muito. E há também dois poetas importantes na minha formação: Drummond e Bandeira, que me ensinaram a importância de ser simples (sem ser simplório). E Guimarães Rosa e Clarice Lispector, pra não fugir à regra da minha geração. No cinema, gosto de Ridley Scott (em especial o de Blade Runner - meu filme de cabeceira), Fritz Lang, Woody Allen, certo Spielberg (de E.T e Inteligência Artificial, por exemplo - gosto do modo como ele lida com o imaginário infantil e infanto-juvenil). Gosto de alguma coisa do cinema novo, de certo Glauber (de Deus e o Diabo na terra do sol, por exemplo, mas não o de Terra em transe), de certo Nelson Pereira dos Santos (de Vidas Secas, mas não o de A terceira margem do Rio). Acho que esses influenciaram mais diretamente na minha formação, cada um de uma forma específica.
Ainda o gancho do cinema. Você, como Woody Allen, diz achar esporte (no seu caso o futebol) mais interessante do que literatura. Woody chegou a afirmar em entrevista que o ato da leitura lhe era penoso. Surpreende-me que intelectuais (atenção: não os estou xingando, 'intelectuais' está aqui em seu perdido-no-tempo sentido positivo) como vocês, criadores de obras erudita e ricamente elaboradas, consigam apreciar uns caras correndo atrás de uma bola. Pra acreditar na honestidade do campeonato brasileiro, por exemplo, é preciso acreditar também em Papai Noel e Coelhinho da Páscoa, o que não creio ser seu caso (mas vai saber...). O Rascunho chegou a dar destaque para esse seu desatino, na capa. Pode se retratar agora, se quiser, alegar insanidade mental momentânea, tudo bem, agora é a hora, fique à vontade.
Imagino que um jogador de futebol também deve achar muito estranho um cara que fica horas sentado numa poltrona lendo um livro, ou na frente do computador, escrevendo um. É uma questão de perspectiva. Futebol é muito mais que uns caras correndo atrás de uma bola. E, claro, muito mais que o campeonato brasileiro, que é apenas, da parte dos cartolas e outros, o aproveitamento político e financeiro de uma arte finíssima (como, aliás, acontece com a própria literatura, ou você acredita que algumas bienais de literatura e outros eventos do tipo podem ser levados a sério?). Há muito mais afinidades entre literatura e futebol do que se possa imaginar. Dei uma longa entrevista pra PUC do Rio falando só desse assunto (está em algum lugar no site da universidade). Em especial, o que me agrada em ambos é a imprevisibilidade. Quando você abre um livro (ou pelo menos um bom livro) nunca sabe como ele vai acabar. Com um jogo de futebol também acontece o mesmo. Mas tudo bem, posso entrar num acordo com você: a literatura não é mais interessante que o futebol, é tanto quanto. Conversando com seu biógrafo Eric Lax, Woody Allen (já deu pra perceber uma de minhas obsessões, né?) afirma que, em seu processo de criação, aprendeu com outro humorista a submeter uma idéia aparentemente boa ao crivo da pergunta: e daí? Se a idéia não se impuser a dois ou três "e daís?" ela não serve. É melhor largar e voltar a ela em outra ocasião. Foi o que lhe aconteceu em A confissão? (Refiro-me aqui à sua resposta a Rogério Pereira no Rascunho, quando você contou que abandonou A confissão no meio, escreveu O campeonato, depois a retomou com sucesso).
Pode ser sim. Essa tirada do Woody Allen é muito boa. No meu caso, estava achando o livro chato de escrever. E quando isso acontece acredito no seguinte: se está chato de escrever, o leitor vai achar chato de ler. Porque penso realmente assim, que o seu prazer de escrever, se é autêntico, de algum modo se transmite ao leitor. Assim como a paixão de um professor (pela literatura, por exemplo) acaba sendo transmitida ao aluno. Além disso, não acredito na idéia (um tanto romântica, talvez) de que escrever deva ser sacrifício. Pode ser difícil às vezes, concordo, mas deve ser uma dificuldade sob controle. Quando você começa a sofrer demais, é melhor deixar pra lá, pra retomar depois ou às vezes abandonar de vez. A esse propósito, lembro o verso de Drummond, no poema Procura da Poesia: "Não colhas do chão o poema que se perdeu." Pra escrever, é preciso saber rasgar também, jogar fora (e não colher do chão).
O elogio que você faz na resenha ao livro do Salman Rushdie (no Prosa e Verso do Globo), em que o narrador era um bom contador de histórias, vale pro seu próprio livro, A confissão, que prende o leitor de forma bastante eficaz (isso vale também pro seu último conto em Da matriz ao beco e depois). Às vezes parece que alguns escritores se agarram ao hermetismo e deixam de lado o "contar uma boa história". Será mesmo preciso ser hermético pra ser (considerado) bom?
Como te disse, devo muito da minha formação, como escritor, leitor, crítico, professor etc., a Drummond e Bandeira, que pregavam justamente o oposto do hermetismo. Acho até que pode haver beleza numa ficção hermética (pense, por exemplo, na dificuldade da primeira leitura de um conto ou romance de Guimarães Rosa, ou no Ulisses, de Joyce), mas desde que o hermetismo, ali, possa te levar a alguma coisa e não se esgote em si mesmo. Esse é o problema, esse hermetismo que parece a figura de uma cobra mordendo o próprio rabo. De todo modo, prefiro uma ficção que seja inventiva, sofisticada e, ao mesmo tempo, possa agradar ao leitor comum, não iniciado.




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