Flávio Carneiro
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Vampiro de histórias
Roberto de Sousa Causo.
Terra Magazine. www.terra.com.br, 15.12.2007.

O crescimento, no Brasil, da literatura de horror com tema de vampiros é um dos fenômenos mais conspícuos da ficção especulativa tupiniquim, iniciado na década de 1990, mas alcançando o seu ápice agora. Os romances de Anne Rice, o RPG Vampiro: A Máscara (1991), de Mark Rein Hagan, e os livros do brasileiro André Vianco têm todos papel nesse boom, imagino, assim como as séries de TV Buffy (1997) e Angel (1999).
Nesse movimento no tempo, o tema abandonou o argumento do contrato com o diabo e o substrato cristão da mitologia criada por Bram Stoker com Drácula, em 1897, concentrando-se nas formas de transmissão do vampirismo e imaginando novas tipologias para esse os vampiros, que assumem as cores das "tribos urbanas" de uma qualquer cidade grande - Nova York ou São Paulo, Paris ou Moscou. Criou-se uma nova mística para esse monstro do horror (como era tratado quando eu era moleque), e até mesmo uma nova metáfora para se enxergar, através dele, novas formas de "alteridade" pós-modernas e de erotismo variante (ou "desviante", como se falava no "meu tempo").
Surgem também, como é inevitável, novos conjuntos de clichês, rapidamente superutilizados. Eu, particularmente, tenho pouca tolerância a vampiros de 300 anos de idade que pensam e agem como adolescentes suburbanos - ou ao assim-chamado "vampiro científico", brotado da árvore plantada em 1988 pelo inglês Brian Stableford, com seu romance The Empire of Fear.
Flávio Carneiro, a quem conheci no evento Curitiba Literária (veja aqui o relato de minha participação no evento) e revi na Jornada Literária SESC de Salvador (veja aqui o relato correspondente), é professor universitário de literatura e autor mainstream com estudos, romances e livros de contos no seu currículo (veja a página do autor em http://www.flaviocarneiro.com.br).
A Confissão é parte de uma trilogia que tem sido publicada pela Rocco e pela Objetiva. O primeiro volume, O Campeonato, saiu por essa segunda editora em 2002, e é um diálogo intertextual com o conto homônimo de Rubem Fonseca, uma ficção científica. Flávio também escreve roteiros de cinema (está trabalhando num filhe sobre a derrota brasileira para o Uruguai em 1950, na Copa do Mundo), tem livros infanto-juvenis publicados, e dá oficinas literárias.
A Confissão é interessante começando pelo formato - um longo depoimento dado a uma interlocutora invisível, o qual o leitor meio que acompanha ouvindo atrás da porta. Nisso ele se alinha com The Dracula Tapes (1975), de Fred Saberhagen, e Entrevista com o Vampiro (1976), de Anne Rice.
O anônimo narrador é também um anônimo trambiqueiro das ruas do Rio de Janeiro, vivendo de roubar livros que vende a colecionadores e a sebos. Costuma se embriagar de vinho barato, e sofre de uma ausência de paladar. Sofre de outras ausências, certamente, conforme o leitor fatalmente irá supor, ao longo do romance.
Narra sua história a uma mulher madura que ele seqüestrou e que mantém prisioneira em uma casa de praia no Rio. "A senhora me escute, por favor", é a sentença de abertura, que traduz o objetivo desse estranho narrador - ele precisa de uma ouvinte; é imprescindível que a mulher o ouça até o fim, ainda que a narrativa a encha de terror, seguidamente.

O que é pertinente à caracterização desse homem como vampiro inicia com sua fascinação por uma rica jovem chamada Emma, que ele seduz após um encontro fortuito. O contato sexual com ela termina com a morte da moça, de uma maneira que ele não consegue explicar. Obcecado com a morte dela, ele vaga pela cidade até cair desmaiado no centro do Rio, para ser socorrido por uma médica madura, Agnes, que lhe informa sobre a sua natureza "vampírica", por assim dizer.
Há dois aspectos interessantes, nesse momento do romance - o primeiro é a evocação de um fandom de vampiros, pessoas fascinadas com essa figura recorrente dos mitos e folclores e também da ficção, e que muitas pessoas levam a sério como a versão que o esoterismo fornece do vampiro - uma espécie de sanguessuga das energias vitais dos outros. É claro, o segundo aspecto é justamente essa variação, vinculada ao esoterismo, do vampiro como alguém que drena as energias ou que consome ou abusa emocional e espiritualmente de outro alguém. (A outra variação que sobra é a do vampiro animal, o morcegão mesmo, que Martin Cruz Smith explorou em Terrores da Noite, de 1977.)
Em A Confissão, esse vampiro emocional é capaz de matar, e durante o sexo, no que Flávio Carneiro evoca a sedução fatal do vampiro da ficção posterior a Drácula. Essa é uma associação direta e suficientemente clara. Uma dedução que se firma ao longo do romance, porém, é a de que o narrador possui encantos invisíveis (como pode um pobre-coitado seduzir tantas mulheres sofisticadas e ricas?), um "magnetismo animal" aparentemente infalível, para usar outro termo antigo.
Para complicar e inserir um outro plano de significados, Agnes, a aficcionada por vampirismo, entrega-se a ele mesmo sabendo que irá morrer, mas disposta a enfrentar a morte especial, que ele traz.

Tudo isso já seria bastante original e instigante, no contexto brasileiro, mas uma sacada particularmente inspirada sobre a idéia do vampiro emocional, é a de que este herdaria da vítima suas memórias, suas sensações, suas experiências de vida. Assim o narrador cura-se de sua falta de paladar, torna-se um apreciador de bons pratos e vinhos. Essa absorção de memórias e experiências leva a uma outra alusão instigante, a da imortalidade. O narrador-vampiro de Flávio Carneiro envelhece como todos nós, mas ele é uma criatura muito mais longeva, porque incorpora as existências das mulheres que matou.
Ele obviamente não herda qualquer solidez de caráter ou profundidade existencial de suas amantes. Continua se comportando como uma espécie de espertalhão pé-de-chinelo das ruas, sempre racionalizando precariamente suas mesquinharias. Resulta na caracterização de um "narrador não-confiável", no sentido de que o leitor não pode pôr a mão no fogo sobre tudo o que ele afirma, especialmente quando ele diz que fazia "bem" às mulheres, ao matá-las, dando-lhes o que supostamente elas queriam. Ao descobrir seu poder, usa-o para não só amealhar conhecimentos que deseja possuir na sua ascensão da sarjeta, mas para roubar de suas vítimas os valores que estiverem disponíveis. Com isso ele viaja pelo mundo, conquistando novas amantes na Inglaterra, em Portugal e em lugares que não se dá ao trabalho de nomear nem numerar.
Sem dúvida, um aspecto determinante do romance é a imersão do leitor, na personalidade do narrador, em sua incerteza e sua volubilidade, simbolizada pela metáfora do copo meio cheio, meio vazio - quando ele costuma tomar meias-resoluções. Para realizar esse mergulho, Flávio tenta criar um discurso meio oral, meio literário, com certo relaxamento da pontuação como principal recurso. Mas me pareceu quase perfunctório, já que há uma gramática bastante correta subjacente, de modo que quase que sem perceber o leitor vai mentalmente colocando os pontos nos lugares certos. Ritmos da oralidade e rupturas mais radicais com o discurso literário bem constituído poderia ter levado a um resultado mais audacioso.
No plano do enredo, o romance realiza um final bastante terrificante, mas que poderia ter causado um impacto ainda maior se tivesse se detido mais em detalhe, nas mortes de suas amantes - especialmente na segunda metade, que é um pouco mais "magra" em descrições, que a primeira. E por falar em detalhes, o livro também teria alcançado uma visualidade e um envolvimento maior (para este leitor, ao menos), com a presença de mais detalhes específicos - de todo tipo: nomes de pessoas e lugares, objetos e paisagens.
Enfim, a última característica de interesse seria o lado metaficcional, de A Confissão - não apenas confissão, mas narração - de uma narrativa composta de outras narrativas "roubadas" (das vítimas do narrador). Como o escritor americano Lucius Shepard afirmou certa vez, na roda das profissões da mitologia hindu, em que supostamente o sujeito ascende espiritualmente ao assumi-las em encarnações sucessivas, a atividade de escritor está logo abaixo da de ladrão. Tem-se portanto a imagem do autor amarrando o leitor para ser "ouvido" por ele, numa narrativa composta de histórias roubadas, e que almeja derradeiramente incorporar também o leitor.
No todo, eis aqui um romance que assume um duplo status - obra mainstream e de horror, como O Fascínio (1996), de Tabajara Ruas, o fizera antes - e que não vem gritar "Olha como consigo fazer o que todos fazem!", mas que engenhosamente dialoga e alude à mitologia do vampiro, expandindo os seus sentidos.




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