Uma boa jogada literária
Beatriz Resende
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 19.10.2002
A sóbria aparência do último livro de Flávio Carneiro, O campeonato,
, quase pomposo, contrasta, de saída, com a referência que vem abaixo do título: romance policial. Ora bolas, romance policial deve ter cara de romance policial, peso (leve) de romance policial, dimensão (reduzida) de romance policial. Romance policial deve ser feito para poder te acompanhar, seguir na condução, ficar debaixo da carteira, até mesmo ir ao banheiro com você, se urgente for.
Antigamente, romances policiais eram escritos por uma gente meio mal encarada ou por misteriosas velhotas, todos deviam fumar muito e beber um outro tanto. Mesmo Rubem Fonseca entra na literatura urbana que incorpora a violência como tema e ritmo da narrativa com a aura de quem fora delegado de polícia. Esta é a primeira dica de que não é exatamente de um romance policial que se trata, ainda que, por paradoxal que possa parecer, não deixe de sê-lo.
Como se não bastasse o espaço que o detetive Pepe Carvalho foi tomando na produção do ensaísta, jornalista político e poeta Manuel Vázques de Montálban, ocupando este interessante pensador crítico tanto quanto Fidel Castro ou o Comandante Marcos, surgiu entre nós o já famoso detetive Espinosa.
O investigador de Copacabana passou a freqüentar o tempo de escrita que o sofisticado pensador García-Roza costumava dedicar, nada mais nada menos, do que à teoria da psicanálise. Um verdadeiro lorde da universidade encanta-se pela prática da literatura policial e... dá certo.
A esta alturas só nos faltava mesmo um professor de pós-graduação em Literatura, doce, elegante e, pasmem os que não o conhecem, jovem, escrever um "romance policial". E o livro ser publicado com cara de ensaio de teoria literária.
Então é porque está mesmo na hora de revermos as categorias classificatórias. Ou ainda, assumirmos que a literatura tem múltiplas, infinitas, funções, entre elas a de divertir.
O autor de O campeonato tem dois gurus: o romancista, roteirista americano pós-moderno e auto-referente Paul Auster, e Rubem Fonseca, autor do conto "O campeonato", publicado em Feliz ano novo.
A breve e forte narrativa se inicia assustadoramente: "Todos nós, animais de sangue quente, sabemos que tudo vai acabar.
No Hotel Aldebaran se realizava o campeonato (não oficial) de conjunção carnal", para terminar com cinismo: "O Governo oficializou novamente os campeontatos. Ninguém mais se emociona com ele, aqui no formigueiro."
Desta história e de seus leitores teria saído a idéia de um campeonato de sexo explícito, envolvendo políticos corruptos, sádicos e voyeurs, enrascada de primeira em que vai se meter o personagem André, aprendiz de detetive.
Toda a obra é atravessada pela literatura, do fingimento assumido de um Jorge Luis Borges à prática da metaliteratura: "Isto não é um romance, André, não dá para escolher nome de personagem." Do glutonismo de Montalbán, nas refeições e bebidas que se repetem a cada capítulo, à parceria com o "Gordo", que pode tomar aspectos de Sherlock Holmes e o caro Watson ou tornar-se mesmo a solidariedade delirante de um Sancho Pança a seu Quixote, sem deixar de ter também certo tom de Gordo e Magro.
Como em Garcia-Roza, a cidade torna-se um dos principais personagens da obra e passeia-se pelo Centro tanto quanto se passeou em "A arte de andar nas ruas do Rio de Janeiro", um dos melhores contos da obra de Rubem Fonseca. Como já se flanava ao lado de Machado de Assis ou Lima Barreto.
Nada é gratuito em quem, como seu personagem, é um maníaco da leitura. Por intermédio do personagem-narrador, Flávio Carneiro se mostra, antes de mais nada, como o grande e privilegiado leitor que é. Este é, também, o primeiro crime da narrativa: o crime de ler obsessivamente, que custa a André seu emprego, demitido da biblioteca onde trabalhava, por ter infringido a ordem de jamais ler no serviço.
Desse modo, a leitura de O campeonato pode ser feita na clave da criação pós-moderna e seu curioso recurso a citações, como pela apreciação da ironia com que, desde Cervantes e Flaubert, os autores mais sofisticados tratam os perigos que a literatura às vezes oferece.
História tem ritmo de videogame
Aqui, porém, agradaria-me chamar atenção para um outro aspecto da obra de Flávio Carneiro, menos evidente à primeira vista, seja pela elegância do volume, seja por sua apresentação como romance policial. Refere-se, neste caso, à recente obsessão que vem me ocupando. É curioso como, num país onde existe hoje, já configurado, um público leitor infantil e, sobretudo, onde se produz uma literatura para crianças e adolescentes de tão extraordinária qualidade, seres nascidos e criados em meio a livros os abandonem de forma tão inabalável quando se tornam jovens adultos.
Mais do que questão de tempo ou escala de prioridades no exercício de suas vidas trepidantes, trata-se mesmo de uma resistência ou, no mínimo, de desinteresse mais absoluto. É como se, quase subitamente, a literatura não lhes dissesse respeito. E não me venham dizer que a culpa é da internet!
A originalidade dessa obra do erudito Flávio Carneiro reside justamente no aspecto de jogo que oferece ao leitor. Gostaria de falar em função lúdica se não tivesse medo de ser mal interpretadada e as sobranceiras zeladoras da qualidade estética se erguessem. Trata-se de um jogo daqueles em que a dificuldade e a complexidade dos lances possíveis aumenta a cada nova etapa, a cada partida.
As informações vão-se acumulando numa ordenação curiosa porque originada da própria leitura. Diferente do raciocínio tradicional de romance de detetive, onde parece sempre haver uma inteligência por trás da autoria que desafia a perspicácia do leitor. Nesse tipo de romance policial, quando o autor é um Dashiel Hammet ou Agatha Christie, o jogo detetivesco é realmente um exercício de lógica, misturado a um pouco de malandragem.
Haverá sempre alguma informação de que o leitor não dispõe ou que está evidente demais para ser verdade. Estes são os bons. Os maus são os que funcionam como palavras cruzadas. Servem para exercitar a memória e evocam um repertório codificável. Nada contra as palavras cruzadas, recomendáveis, como o Ginko Biloba. Mas não é isso que interessa hoje aos jovens. Por isso também não não leitores de policiais.
É ainda Montalbán quem chama a atenção para o fato de que numa sociedade carregada de tensões, de relação entre política e crime, de dupla moral, inventar e reinventar a realidade através de uma literatura do crime não é, forçosamente, afastar-se do rigor literário.
O jogo que Flávio Carneiro propõe lida com todos estes ingredientes, como o Banco Imobiliário lidava com dinheiro na época em que exitia dinheiro de verdade. Ninguém deixou de ler só poquer disputou partidas intermináveis do jogo, nem ninguém virou bandido porque jogou WAR, capaz de manter aborrecentes quietos por horas a fio. É este encaixe de peças, às vezes de forma mesmo pouco lógica, que pode, de saída, interessar a um dos ex-leitores que têm me preocupado.
Outra atração, talvez ainda curiosa, é a juventude do narrador-detetive. André tenta sobreviver, atracado aos livros, à súbita necessidade de ser adulto após a morte dos pais e ao controle do irmão-mais-velho-protetor-bem-sucedido. Vira detetive por preguiça e desinteresse pela sociedade à sua volta. Sem maiores revoltas, mas suficientemente anarquista para atrair o jovem leitor.
Entre disputas meio machistas sobre futebol, vários chopes pelos bairros da cidade em companhia do excelente personagem que é o Gordo (trabalha numa livraria mas não aborrece ninguém com lições de literatura) e submetido ao domínio escravista do tesão a que não se consegue escapar antes de se completar 20 e poucos anos, nosso jovem vai se metendo em confusão atrás de confusão. Afinal, no mundo dos estabelecidos na vida ninguém presta e não se pode mesmo confiar em alguém com mais de 30 anos.
O jovem, a quem é atribuída a tarefa de salvar um garoto que fora, talvez, seqüestrado, vomita na pia, sonha com a vizinha, gosta de pizza com Coca-Cola e bebe água no gargalo da garrafa da geladeira. "Fui até o quarto, vesti um moletom velho, calcei meias. Eu gostava de andar de meias, sem sapato, dentro de casa. Dava uma sensação boa, meio abandono e aconchego ao mesmo tempo."
São essas fascinantes "atitudes" que confortam aqueles que ainda não chegaram à fase da vida em que se percebe que alguém vai precisar lavar aquelas malditas meias, a garrafa babada ou o banheiro vomitado.
É a simpática juventude do narrador, que passa por mulheres mais sedutoras que a Mulher-Gato e acaba nos braços de uma garota meio hippie de 15 anos e olhos azuis, que torna o detetive por correspondência um condutor de jogos e, ao mesmo tempo, personagem capaz de produzir a indispensável identificação que não há de ser o Conselheiro Aires que vai despertar num jovem. Isso tudo não vai tirar ninguém da leitura de Borges, Paul Auster, Machado de Assis, como Rubem Fonseca não tirou. Mas pode, quem sabe, levar alguns jovens até lá.
Um jogo complicado e trabalhoso, em ritmo de videogame e atravessado pelo humor talvez seja capaz de convencer jovens de que a felicidade pode estar no caminhar pelas ruas ao lado de uma jovem flautista e não em um avião a caminho de Miami, com dólares na carteira.
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