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Tudo é importante
Gustavo Bernardo
www.klickescritores.com.br, dezembro de 2000
Abro a resenha de Lalande, novela de Flávio Carneiro, com a seguinte afirmação: o melhor livro para crianças é aquele com que o adulto se empolga.
Admito, a afirmação é um pouco drástica, sugerindo recusa do ponto de vista da criança em favor do ponto de vista do adulto - ou, pior ainda, do ponto de vista de um crítico-professor. Entretanto, refuto esta réplica que eu mesmo estou me fazendo, lembrando que criança não é uma "coisa" e adulto outra. Machado de Assis já nos disse que o menino é o pai do homem e Freud depois desenvolveu essa idéia, apontando para o menino e a menina que nunca morrem dentro do homem e da mulher - não apenas não morrem como continuam definindo seus objetivos, seus gestos e seu destino. O tal do inconsciente jamais deixa de ser criança, o que significa que jamais deixa de ser inocente e perverso ao mesmo tempo.
Nesse sentido, o melhor livro para crianças é aquele com que o adulto se empolga porque não infantiliza artificialmente o seu leitor. Etimologicamente, o termo "infante" quer dizer "sem-fala", ou seja, surdo, mudo e analfabeto. A literatura que se preza deve, por princípio, desinfantilizar o seu leitor, seja ele criança ou adulto, para lhe passar, como um bastão olímpico, o poder da fala e da escrita. Se determinado livro, pela lógica do mercado destinado e distribuído para crianças, empolga um leitor adulto, a criança dentro dele (seu coração, na metáfora mais antiga, ou seu inconsciente, na metáfora mais moderna) é que se entusiasmou: por um instante, exatamente, desinfantilizou-se. Não é bem que tenha "crescido", mas sim: algo, a partir daquela história e daquelas palavras, alargou o seu mundo afetivo.
Lalande se encontra, no meu modesto entender, entre os melhores livros para crianças, pré-adolescentes e adolescentes porque empolgou e entusiasmou este pós-adolescente (bota "pós" nisso) que vos escreve. Enriquecido por sofisticadas ilustrações de Rui de Oliveira, a história parece acontecer em um tempo muito antigo, aquele do "era uma vez", num ambiente oriental em que meninas não choram e são educadas pelo irmão mais novo. Mais tarde, o leitor descobre que o tempo muito antigo é na verdade o futuro - um futuro apocalíptico sem noção do que perdera. Não havia espelhos e nem livros - ou por outra, os livros do lugar chamado Lalande não podiam ter mais do que três páginas.
O título da história de Flávio é o nome da cidade em que mora a personagem principal, uma menina curiosa chamada Xie Kitchin, mas é também o enigma central. O que queria dizer "Lalande"? Não vou responder aqui para não estragar o prazer da descoberta, se é exatamente este significado que Xie procura desde o princípio. Para fazê-lo, a heroína da história precisa passar por outros personagens estranhos, como os Criticantes (sujeitos muito pouco críticos) e os Grandes Perguntadores, em rituais de passagem que são ao mesmo tempo rituais de crescimento e de humilhação.
Um dos rituais acontece na Praça do Silêncio, onde as pessoas se reúnem para ficarem caladas. Este lugar parece interessante: silêncio às vezes é necessário, para proteger as palavras da conversa fiada e da barulheira. Naquele lugar, no entanto, também se aprendia a submissão, especialmente feminina. Xie, quando tinha onze anos, precisou entrar na Praça do Silêncio para responder às perguntas dos Três Grandes Perguntadores, seguindo, porém, o Manual do silêncio. Ela responde certo, mas o terceiro Perguntador, percebendo o brilho nos seus olhos, lhe planta uma pulga atrás da orelha: o que significa Lalande?
A partir daí a menina vai procurar esse significado, começando por contestar os livros existentes que, como sabemos, eram muito pequenos. O livro dos animais sagrados, por exemplo, falava de três animais sagrados: a borboleta, que protege crianças e adolescentes (bonito simbolismo, em especial para uma garota de onze anos), o gato, que protege adultos e velhos (por conta de suas sete vidas regulamentares), e a sereia, que protege a si mesma (o que me pareceu uma imagem genial). Insatisfeita, Xie cria (ou descobre, o que é o mesmo) o quarto animal sagrado: o dragão, que protege a morte. Um símbolo para proteger a morte também é uma bela e flamejante idéia, e é com este símbolo que Xie dá conta da sua procura.
Mais não conto, em respeito ao leitor, que precisa procurar junto. Destaco, apenas, as delicadas ilustrações de Rui de Oliveira. Em estilo oriental, economizam traços e, principalmente, constroem uma perspectiva bem diferente daquela com que nós, ocidentais naturalistas, estamos habituados. Ao invés de simular a profundidade, chapam figura e fundo nas mesmas duas dimensões, como a dizer: "tudo é importante". Passado e futuro, por exemplo, estão no mesmo plano de realidade e de valor. As imagens, assim, acompanham o brilho dos olhos de Xie Kitchin, que procura conhecer tudo sem precisar enquadrar ou classificar nada se, afinal, tudo é importante.
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