Flávio Carneiro
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Perguntas secretas de uma menina
Eliana Yunes
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 11.11.2000

Quando se escreve por ofício, os textos, mesmos os de singela aparência, guardam extraordinárias provocações. É o caso de Lalande, de Flávio Carneiro, que, professor de literatura e escritor já premiado com o livro de contos Da matriz ao beco e depois (Rocco), ronda as leituras e as cidades com diligente cuidado, a exemplo de seu mestre Calvino.
Lalande, nome de ressonâncias sugestivas, uma cidade com população disciplinada, Praça do Silêncio, Trocadores de Palavras, Grandes Perguntadores, visitantes misteriosos, livros secretos e crianças sabidas, é o cenário da história de Xie Kitchin, menina educada pelo irmão mais novo, um simples João, com quem descobre que " menina não chora".
Mas não se trata de uma história às avessas, tipo vampiro que não gosta de sangue ou dragão bonzinho que não cospe fogo. Numa terra que nasce sem nome e onde não há espelho, tudo depende de um Criticante, figura venerável em toda casa para avaliar qualquer coisa, de dia ou de noite. Sua opinião ou crítica não admitem réplicas e não será acaso que na casa da menina ele se chame Noeros da Silva.
Ao estilo mágico de Marco Polo, Flávio inventa uma ágora invertida onde o povo se reúne para ficar em silêncio e responder aos Grandes Perguntadores perguntas prévias de respostas previstas pelo manual, exceto uma pela qual se é ou não admitido na praça, no dia da mudança. O que muda? Nada e muita coisa, dependendo de quem seja. Com Xie Kitchin, muda muito por conta de sua sinceridade desabrida. Descoberta como quem tem pensamento próprio, a menina fica autorizada pelo mais importantes dos Perguntadores a procurar o significado de Lalande.
Onde? Ela vai aos livros, primeiro.
Depois parte para a vila dos Trocadores de Palavras, que moram em casas de papel e guardam palavras em caixinhas para trocar com quem venha-lhes ao encontro. Sugestivo é que a vila fica nos limites de Lalande; com eles se guardam as memórias que os homens da cidade não querem conservar.
Por isto, além de Trocadores de Palavras, são Contadores de Histórias. Xie Kitchin fica sabendo que eles começaram como inventadores de palavras, instigados pela leitura de um livro misterioso que uma mulher esquisita deixara no meio da Praça e que perturbou a uns e outros de modo que uns começaram a escrever e outros a querer queimar livros. Todos proibidos de escrever, alguns permaneceram trocando palavras até se fazerem Grandes Perguntadores.
Numa artimanha lúdica e intertextual de grande sagacidade, enquanto se relata uma história de Kitchin, outra se desenha na trama do discurso: Alice, trocadora de palavras, toca de coelho, casa-flor, Brilhuz, animais sagrados, quatro elementos, grande viagem, gavetas de guardar o mar, mulher esquisita, Lalande e... Clarice, perto do coração selvagem. As meninas, lidas em separado, se fundem aos olhos do leitor experiente que entra no jogo da escritura.
Flávio esboça, na companhia do excelente Rui de Oliveira, com suas imagens orientais delicadas e sugestivas de sonho e fantástico, uma narrativa que só pertence por inteiro, a jovens leitores, por momentos. Ela instiga e demanda outras leituras; concede que se entreleia um texto que só está escrito entre o real e o imaginário, na pura ficção de quem inventa o mundo pela palavra, porque é leitor.
Escrevendo um livro premiado com infantil, Flávio Carneiro reconta uma trajetória de leituras cuja intertextualidade excita leitores de outras viagens. Belo exercício de escrever para uns e outros sem fazer concessões fáceis e sem complicar desnecessariamente.



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