Flávio Carneiro
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Passe de Letra
Paula Cajaty
www.paulacajaty.com.br, 03/05/2010

Mulheres geralmente não compreendem a avidez masculina pelo futebol. Basta um gramado verde e uma bola rolando na tela da tevê, e eles ficam paralisados e surdos a qualquer outro ruído além da narração do jogo.
Recentemente, o maior desafio das moças recém-casadas e motivo de muitas consultas em consultórios de terapia de casais (e estou falando seríssimo) é o FIFA 2010. Vou explicar para quem ainda não foi apresentado à 'nova praga' do milênio.
O jogo no PlayStation3 que tem tirado os barbados do sério parece de verdade para quem passa desatento. Não se trata de um jogo qualquer: pode-se escolher entre os times de verdade, entre os jogadores de verdade, com suas qualidades e defeitos (o jogador Ronaldo, por exemplo, terá bom ataque e baixo desempenho na corrida), entre narradores de verdade (Galvão Bueno está lá), isso para não dizer que o game também pode ser jogado online, com players desconhecidos do mundo inteiro, ou com amigos de outros bairros conectados ao gadget demoníaco. Não se trata mais da bola de meia com dois chinelos para a pelada de rua: internet e celular, além do PS3 (pois tevê todo mundo tem), resolvem tudo.
Muitas das vezes as mulheres até suportam tudo isso, esse adolescente incomum dentro de casa. Mas compreender de forma plena e intrínseca, jamais. Não lhes restam memórias suficientes além das arquibancadas de cimento do colégio.
Diante desse panorama inóspito é que abri o livro. Em parte querendo entender mais sobre a paixão nacional, em parte desconfiada de que o autor cedesse aos apelos do hábito e pesasse a mão nas gírias futebolísticas. Nada disso. O autor domina a bola e controla, de forma exímia, o tempo do jogo.
É fato que já havia sido apresentada, timidamente, ao futebol, no tempo do jogo contra com a família nos gramados de parques públicos (bastante divertido ganhar do irmão mais novo, que tirava a bola do campo aborrecido com o resultado) e depois no tempo de namoro (em que a gente acha tudo lindo e torce para o time do namorado).
Conhecia, também, a intimidade e a simplicidade com que Flávio Carneiro (de 'A confissão'), sabe contar uma história. Sestroso, ele consegue chegar ao pé do ouvido de seu leitor e domina como ninguém a arte da ilusão, arrancando risadas e angústias do peito, como se a história contada fosse de verdade.
'Passe de letra', assim como o drible que deu origem à locução - aquele em que o atleta precisa cruzar as pernas e tira a bola do pé do adversário num golpe de mágica - surpreende e redime. A plateia vibra: oooooohhhh.
As crônicas expostas no livro já haviam sido publicadas no 'Jornal Rascunho' e, quando as descobri, ao fim do jornal - como acontece com todas as editorias esportivas - consegui pegar apenas as derradeiras. Chegou ao ponto de eu me ver agindo como um guri: pegando o jornal pela última página.
Como todo jogo, o autor preparou o 'Aquecimento' e o livro ganhou até os 'Acréscimos' habituais.
'Passe de letra' contagia, surpreende, drible invisível em que a gente imagina que o autor vai para um lado e ele te ganha, do outro. E a redenção vem do reconhecimento sereno de que, sem dúvida, não se trata mais de um jogo de meninos, mas de pura genialidade esportiva - e no caso de Flávio, também literária.
Aprendo a olhar com olhos mais mansos o marido no sofá. O jogo de futebol, verdadeiro ou simulado, resume algo de sua infância, algo de um sonho que não se permite terminar, algo de nostalgia, lembrança e resgate no qual que não ouso mais interferir. Afinal, meninas nunca precisaram reunir 21 outras amigas para disputar uma boneca, e talvez esteja aí toda a diferença.
Fecho o livro e vou para a cozinha. Vou bater um bolo para terminar o domingo ao som de berros, silêncios, gemidos e palavrões. Ao fim do jogo, ele pergunta macio: 'Tem lanche?'. E talvez este já seja um bom começo para outra história de futebol e literatura.



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