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Paisagens cariocas num cenário de ficção científica
Sérgio de Sá
Jornal O Globo. Caderno Prosa & Verso. Rio de Janeiro, 10.03.2012
Com o romance A ilha, Flávio Carneiro completa a Trilogia do Rio de Janeiro. Depois de O campeonato (2002) e A confissão (2006), o escritor goiano radicado no Rio embarca numa ficção científica. Vem de um futuro primitivo o lugar do narrador, velho bibliotecário franciscano que tem o prazer de dar as mãos ao leitor em passeios por um pedaço de terra cercado de água por todos os lados, o de baixo inclusive.
Na ilha flutuante, ouvimos a voz desse narrador, que as frases fazem reverberar de modo suavemente rouco. O texto tem uma delicadeza que lhe confere quase inexplicável simpatia (a da imagem idealizada de um frade, talvez). E, tal como uma despretensiosa câmera cinematográfica, deposita o olhar levando em conta o tempo necessário para ver. Por isso, permite ao autor entrar por terrenos mais densos, a princípio menos propensos à compreensão do dito leitor comum.
O projeto literário de Carneiro supõe diálogos com gêneros consagrados junto ao público, sem jamais perder a tensão da teoria. Não é fácil manter essa junção no equilíbrio da balança, seja no policial, no fantástico ou na science fiction. O entretenimento tende a afastar os conceitos. Em sua constante e explícita metanarrativa, A ilha abre uma brecha para esse encontro.
O narrador é um prestador de contas. Da janela que enquadra tudo do alto do convento, ele nos orienta. Sim, como um panóptico em que os presos são os habitantes da ilha e nós, vigilantes leitores. Diz o que é possível ver e ouvir. Lamenta não alcançar determinada conversa entre personagens. Onisciência controlada. Falta-lhe às vezes alguma ironia, sobram em outras ocasiões cristianismo e didatismo, o que convém ao narrador sendo ele quem é, mas o que também irrita o leitor que não pretende sempre ser tutelado.
Há um embate entre presente e futuro, passado e presente, passado e futuro. O jogo de espelhos é o do tempo da narrativa, assim como está entre os lugares da esperança dos personagens, que querem saber se o continente (o outro, afinal) existe ou não. Como boa praxe em toda sua obra, Flávio Carneiro ainda tematiza as noções e os significados da leitura, além, claro, da perspectiva de sua permanência no passar das horas e dos dias.
A ilha (em si) é imagem de partes do Rio de Janeiro (Leblon, Leme, Lagoa e outras) reinventadas, descoladas do continente. “Lá está a imensa pedra que chamamos de Arpoador, onde alguns dos ilhéus gostam de se reunir para ver o pôr do sol.” Ou: “Não temos conosco a luneta de Pepe mas a janela nos concede uma compensação ao franquear passagem a uma esquina do morro de Santa Teresa, permitindo uma imagem do bar onde homens e mulheres conversam sobre o mesmo assunto: outras pessoas sumiram.”
Cidade Ideal (em maiúsculas), maravilhosa, sonho de harmonia e perfeição que apenas a ciência dentro da literatura seria capaz de criar. Prédios não existem para desabar. Bueiros não explodem. Não à toa, há referências à Utopia de São Thomas More, ao Dom Quixote de Miguel de Cervantes e à Bíblia, particularmente ao Livro do Gênesis. Impossível não pensar também no filme O show de Truman.
Para os fãs de ficção científica, Carneiro deixa algumas pegadas. Por exemplo: o autor de um romance dentro do romance (crucial para a trama, diga-se) se chama P. D. Deckart, referência direta a um personagem do escritor Philip K. Dick, amado por dez entre dez leitores do gênero. Para os mais cinéfilos, a referência é o filme Blade Runner. E não se pode esquecer que um livro de Aldous Huxley leva o mesmo título, também girando em torno de uma sociedade ideal.
Na ilha literária de Flávio Carneiro reside a vontade de que o renascimento se dê com suavidade e, ao mesmo tempo, com bastante determinação. Sobretudo, me parece, o autor reivindica um lugar especial para o livro e a literatura, em que entram todos os Crusoés loucos para fugir da realidade. Porque ela, realidade, teria naufragado nas mãos dos homens da racionalidade e da paixão absolutas, de hoje e do porvir que já não soa tão inverossímil.
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