Flávio Carneiro
Comentários
O sonho do real
José Castello
Jornal O Globo. Rio de Janeiro, 28.06.2014

Somos todos iguais, somos todos diferentes. É desse fato sem nexo e, no entanto, verdadeiro, que Flávio Carneiro trata em "Devagar & Divagando", bela narrativa infantil que acaba de sair pela Rocco, com ilustrações fortes de Flávio Fargas. Se fôssemos todos iguais, a vida seria pura monotonia e repetição. Se fôssemos absolutamente diferentes, viveríamos em um mundo incompreensível, isolados uns dos outros, imersos na mais aflitiva solidão. A vida é rica justamente porque somos iguais e diferentes ao mesmo tempo. Porque somos e não somos. A vida é rica porque é complexa, porque é uma grande complicação.
Como falar disso com as crianças? Tal paradoxo não cabe, de fato, em uma explicação linear. Não pode ser demonstrado. Também não pode ser ensinado em uma apostila. As crianças precisam vivê-lo e, para isso, para carregá-las em um mundo de estranheza e de beleza, Flávio Carneiro escreveu sua história. Para isso serve a ficção: para dar conta de coisas que, de outra maneira, estariam sempre a nos escapar. Para falar do impossível e lhe emprestar uma face.
Devagar é uma tartaruga marinha que tem o sonho ardente de conhecer o mar. Divagando é uma vaca que tem o sonho insistente de comer capim. O mar e o capim são os amores impossíveis de Devagar e de Divagando. Elas não exigem muito da vida: querem apenas aquilo que todas as outras tartarugas e as outras vacas têm. A impossibilidade de concretizar esse sonho tão simples - mas inacessível - as entristece. As duas são muito amigas. "E tinham várias coisas em comum, além do fato de terem sonhos estranhos e não serem uma vaca e uma tartaruga normais". O que é comum para as outras tartarugas marinhas - conhecer o mar -, para a lentíssima Devagar é um mistério. O que todas as vacas estão acostumadas a comer - bons punhados de capim - é a iguaria impossível da contemplativa Divagando. Ambas são arrastadas por seus sonhos. Os sonhos as levam a viver.
Devagar e Divagando pertencem a Elisa, uma menina de seis anos de idade. Ela as ganhou de presente dos pais. Não passam, na verdade, de brinquedos de pelúcia - inquietos bonecos que, movidos por fantasias, alimentam o desejo de existir. Elisa se preocupa com a tristeza de suas duas amigas. Reclama com o pai e sugere que ele as leve ao veterinário. "Acho que o veterinário não saberia o que fazer com elas", o pai lhe explica. "Elas não são muito normais, você me entende?" Elisa se revolta com a notícia da anormalidade de Devagar e de Divagando. Não teriam problemas em sua vida de brinquedos inanimados, não fossem os sonhos que as atormentam.
Crianças cultivam sonhos radicais. Recordo-me que, muito menino, logo depois de meus pais me falarem, pela primeira vez, a respeito da existência de deus, eu os atormentei com uma pergunta: "Se deus pode tudo, ele pode existir e não existir ao mesmo tempo?" Eu devia ter sete ou oito anos de idade quando a formulei. Até hoje, quando a recordo, ela me atormenta. Por isso ler um livro como o de Flávio Carneiro ajuda muito. E ajuda não apenas às crianças, mas a um homem de cabelos brancos como eu.
Um dia, Devagar sonha que passa férias no Caribe. Está a bordo de um iate muito bonito e muito branco chamado Lady Elisa - está a bordo de sua dona. Da parte mais alta do iate, ela, enfim, pode ver o mar imenso. O capitão do navio é o pai de Elisa. De repente, ele faz uma manobra mais brusca e a tartaruguinha sente uma forte tonteira. Um vento a arrasta do colo de Elisa e a lança dentro do mar. Ao fim do mergulho, quando enfim emerge, ela entende que não havia mais iate algum. Outra tartaruga, que a chama de prima, dela se aproxima - e a leva para uma praia habitada por tartarugas marinhas. Dessas que, vistas à distância, parecem absolutamente iguais. No entanto, Devagar estava entre elas e continuava a ser absolutamente diferente.
Até que todas elas, de repente, desaparecem e Devagar se vê sozinha. Nessa hora, faz uma importante descoberta: ela entende o que é um sonho. "Não havia ninguém. Nem Elisa, nem o pai de Elisa, nem iate, nem tartarugas marinhas". Ela entende o que é a imaginação - entende o que é a ficção. Algo muito parecido acontece com Divagando que, um dia, sonha que está em uma fazenda do Rio Grande do Sul. Lá se encontra com Elisa e seu pai. Caminhando pelo pasto luminoso, enfrenta, ela também, uma grande tonteira. É como se fosse tragada por um imenso buraco, no fundo do qual existem apenas muitas folhas secas, que amparam sua queda. Finalmente, encontra com outras vacas - mas logo todas desaparecem e ela compreende que está sonhando também. "Entre um sonho e outro, entre uma alegria aqui, uma tristeza ali, iam levando a vida aquelas duas amigas".
Elisa entra de férias e o pai lhe pergunta para onde deseja viajar. Primeiro responde que quer ir para a praia. "Se bem que seria muito legal ir para a fazenda do meu tio, não é?" Também a menina está dividida. Também ela quer, mas não quer. Também ela se reparte entre duas realidades, que só o amor do pai consegue unir. "Por que não fazemos as duas coisas?", ele lhe pergunta. Elisa diz que sim, mas que levará consigo seus dois brinquedos de pelúcia. Devagar e Divagando vão viajar. O pai se espanta, acha que a praia e a fazenda não são lugares adequados para dois bichinhos tão frágeis. Mas confia na promessa da menina de que cuidará de seus brinquedos. "E foi assim que, finalmente, os sonhos de Devagar e Divagando se tornaram realidade. Ou quase isso".
Também a realidade é quase - ela nunca vem inteira. Arrasta atrás de si a chama inseparável do sonho, e por isso é igual, mas também diferente de si mesma. Sem uma injeção de fantasia, realidade alguma tem sentido e é isso que Flávio Carneiro tenta mostrar a seus pequenos leitores. Pensamentos mais difíceis para nós, adultos, acostumados à vida pragmática e ao domínio da razão. Para as crianças é mais fácil - basta brincar que as duas coisas, real e sonho, se juntam. É só porque sonhamos - é só porque somos, mas não somos - que a realidade enfim existe.



Outros Comentários



Voltar