Flávio Carneiro
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O leitor fingido
Cristhiano Aguiar
www.cristhianoaguiar.wordpress.com. São Paulo, junho de 2010.

Meu pai é cientista e um entusiasta de livros e artigos de divulgação científica. De fato, este tipo de publicação exerce um papel fundamental, pois se torna mediador entre o conhecimento produzido dentro das universidades e os interesses do público em geral.
De certo modo, no caso da minha área de atuação, sempre enxerguei a boa crítica literária como uma espécie de “divulgadora da literatura”. Claro, à crítica outras funções cabem, contudo sempre procuro estudar e debater textos literários tendo em mente este aspecto.
Acredito que o Leitor fingido, escrito por Flávio Carneiro e que li este final de semana, entre um jogo e outro da Copa, tenha sido escrito com este propósito. Carneiro é professor, crítico literário, escritor. Conheci-o este ano, aqui no Recife, durante os cursos promovidos pelo Itaú Cultural.
Trata-se de um livro muito bom de ler e que nos apresenta diversos aspectos do debate sobre a leitura. Um dos acertos de Carneiro consiste em evidenciar na própria escrita o ato de leitura. Na primeira parte do livro, por exemplo, “Através do espelho (e o que o leitor encontrou lá) ”, temos um conjunto de considerações teóricas sobre leitura e autoria, intercaladas com trechos intimistas, na qual são praticadas misturas entre ficção-crônica-memorialismo. É evidente o clima de intimidade que o livro deseja criar com aqueles que se propõem a lê-lo e isto me agradou.
A leveza do texto de Carneiro, contudo, às vezes o vitima . Sim, estamos diante muito mais de um livro de “divulgação literária”, do que um tomo de teoria sobre a leitura e a escrita. Isto está claro e é muito válido, como salientei. No entanto, em pelo menos dois pontos eu queria que o autor tivesse aprofundado. Primeiro, em relação à visão que Foucault possui do autor - como não concordo inteiramente com ela, gostaria de ter visto mais desenvolvimento sobre isso. Não tenho condições de explicitar a discordância aqui, mas penso que há uma certa disposição paranóica nessa ideia de que o autor foi substituído por uma “função autor”. Será mesmo? Talvez eu esteja caindo na ideologia “burguesa”, contudo ainda aposto que há algum tipo de individualidade possível, principalmente na escrita. Ou o próprio Foucault não seria um autor personalíssimo?
Na página 61, Carneiro começa a falar do que o leva a não gostar de um livro, mas encerra de forma curta demais. Acho que teria sido um tópico bem bacana para se explorar. Penso, contudo, neste exato momento, que de certa forma a segunda parte do livro, na qual Carneiro lê uma série de textos sob o foco de como metaforizam a leitura, continua esta discussão de valores, pois são apontados no texto elementos que os tornam tão interessantes.
Ainda na primeira parte, uma das melhores coisas que aprendi foi sobre os hypomnemata:
“Eram cadernos nos quais os filósofos anotavam suas leituras. Junto a considerações esparsas, envolvendo os mais variados temas e depoimentos pessoais sobre fatos presenciados durante o dia ou ouvidos de alguém, eram registrados também fragmentos de obras, citações” (p.62)
Parecido com um blog, não? Isto me lembra um artigo de Ruffato que também li esses dias, no Rascunho, elogiando a crônica. Parece existir, o Leitor fingido nos mostra, a necessidade de uma experiência com a linguagem que passe pelo campo do fragmento, da impressão, do cotidiano; desta forma, temos mais uma ferramenta de construção do conhecimento de si próprio.
Na segunda e última parte, “Álbum de retratos (o leitor em branco & preto) ”, memória e ficcionalidade mais uma vez se misturam, desta vez à crítica literária; Machado de Assis, Rubem Fonseca, Italo Calvino, Jorge Luis Borges e João Gilberto Noll são alguns dos escritores analisados por Carneiro. A ideia que costura todas as análises é a constatação de que o ato de leitura é um dos mais importantes temas da literatura; não necessariamente no sentido da metaficção, como em Borges, Piglia, Bolaño, Osman e Vila-Matas (belo time, não?), porém num sentido mais amplo. Desta maneira, percebemos uma das melhores contribuições que a literatura pode dar para a gente: a de ajudar a nos tornarmos melhores leitores das páginas abertas dentro do mundo.
Aqui, um elogio e uma crítica; primeiro, é muito interessante que Carneiro pratique a releitura, um dos aspectos do ato de ler que foi elogiado na primeira parte. Desta forma, alguns textos são lidos duas vezes, em capítulos alternados, revelando novos aspectos que a primeira análise não mostrou. No tocante à ressalva, esta é semelhante a da primeira parte: algumas terminam cedo demais e ficam muito ligeiras.
Enfim, o livro de Carneiro me passou aquilo que acredito tenha sido sua vocação primeira: o prazer de ler; prazer ora delicado, ora perturbador.



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