Flávio Carneiro
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O leitor e a Casa das Letras
Renato Cordeiro Gomes
Revista Alceu, nº 3. Rio de Janeiro: PUC, segundo semestre de 2001

Ao deixar para as gerações de 2000 "as seis propostas" como herança do milênio, que há pouco fechou para balanço, o escritor italiano Italo Calvino oferta a "exatidão" como um bem, entre outros - leveza, rapidez, visibilidade, multiplicidade, consistência - que seriam "valores ou qualidades que só a literatura com seus meios específicos" poderia nos dar.
Como um representante da geração que faz ponte entre os dois milênios, Flávio Carneiro se apossa deste legado e o elege para articular seu belo livro. A herança não é gasta inutilmente; torna-se lucrativa nesta economia simbólica cujas engrenagens os estudos de literatura põem em ação. Não é à toa que o herdeiro dê privilégio ao texto de Calvino sobre a exatidão, de onde recorta as imagens do cristal e da chama, para título de seu livro de ensaios sobre o leitor, aquele que habita, hoje, a Casa das Letras/ de letras.
As primeiras pistas de decifração desses ensaios são oferecidas por Calvino que conjuga à exatidão uma idéia de limite, de medida, e, paradoxalmente, a do infinitamente vasto, ou seja, une precisão e indeterminação, o rigor abstrato e o vago flutuar das sensações. A essas idéias associa ele as imagens do cristal e da chama. O cristal com seu facetado preciso e sua capacidade de refratar a luz, é a imagem da invariância e da regularidade, conotando geometria, solidez, ao passo que a chama é a imagem da fluidez e do efêmero, conotando vivência, agitação. A forma dura e a forma forjada. Nessa imagens contrapostas, o escritor identifica duas categorias para classificar fatos, idéias, estilos e sentimentos. Experimentar essa espécie de jogo sem fim e sem solução pode ser divertido (tentem!): os resultados são imprevisíveis, pois dependem dos jogadores e da variação de escalas.
Motiva-se daí o título Entre o cristal e a chama. "Entre" os dois termos, situa-se o autor-herdeiro que se constitui enquanto leitor, nesse espaço intervalar, ponte entre as duas imagens. A estratégia que comanda a elaboração do texto constrói um espaço híbrido: entre leitura e escrita, entre ensaio e ficção, entre racionalidade e desejo, entre leitura intelectual, de raciocínio lógico e conceitual, e leitura intuitiva, de sensibilidade mais aguçada, entre razão e paixão, entre leitor ativo e leitor passivo. Isto tanto quando teoriza, tanto quando narra, reconta e recria outros textos, com a inventividade de um leitor-criador de ficções. Tanto no rigoroso e belo prefácio, "Breve passeio pelos bosques da leitura", quanto nos ensaios que constituem o "Caderno de leitura". Deste modo, entre o cristal e a chama, entre argumentação e análise, Flávio pavimenta uma terceira via, para além dos caminhos que se bifurcam; sabe que as interpretações podem cristalizar-se, entretanto sabe também que é possível construir novas leituras que reativem as forças significativas dos textos, que não se esgotam. Revela, assim, que cada leitura é um caso, um exercício, um jogo: um ensaio, que é experimentação.
Este livro deixa patente uma competência que é saber o que e como ler, competência atrelada a outra, a do escrever, que aciona a força inventiva, que ordena, monta (o livro é também uma montagem), e conjuga-se com fazer, mostrar, expor, narrar. Daí a leitura em espiral, que não estanca e vai se fazendo outra, quando é retomada mais adiante.
É por essa estratégia que a leitura incorpora outras leituras; a recepção é acúmulo seletivo de outras recepções. Entretanto esse leitor que escreve, à medida que vai se constituindo como tal, não abre mão de sua assinatura e deixa sua marca autoral. Nem cristal, nem chama: entre! Ou ainda como declara: "ler é ter consciência desse jogo de alternância dos lugares de origem de criação: é saber que se trata de uma partida entre criador e criatura, mas uma partida na qual os jogadores trocam, ininterruptamente, de papel". Neste espaço entre cristal e chama, passeia então esse leitor móvel, "provocador do texto, provocador de respostas"
Porque atravessa este entrelugar, o texto se faz híbrido com dois tipos de registro. O caráter ensaístico próximo da escrita narrativa predomina no corpo principal, que é o "Caderno de leitura", os trinta ensaios trabalhados em séries, as quais fornecem a estrutura do livro, cujo sumário revela um jogo rigoroso inspirado em Italo Calvino de As cidades invisíveis.
Este traço imprime ao texto um tom de leveza, sem o peso dos grandes tratados, porém sem nada de espontâneo, porque fruto de elaboração acuradíssima. O outro tipo de registro vem nas tiradas teóricas e no prefácio, na verdade um ensaio que tematiza o leitor através de um passeio pelo bosque da teoria colhida de Jaus, Iser, Barthes, Umberto Eco, Foucault entre outros.
Essa estratégia discursiva permite proceder a uma espécie de pilhagem do que está estocado na biblioteca, que o leitor-escritor manipula e reordena, ao mesmo tempo que pode desdobrar-se em vários eus, um plural de máscaras de leitor que encena a leitura. Assim, sem deixar de ser Flávio, não a pessoa biográfica, mas o nome do leitor que escreve, pode ele ser Dupin, Menard, o homem da multidão, Daniel Quin, Marco Polo, Kublai Khan, Sherazade etc, quando lê Poe, Borges, Paul Auster, Italo Calvino, Machado de Assis, Cortázar, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e tantos outros, que constituem o repertório reativado pela leitura. Trabalhando contos e romances também como lugares teóricos, manipula elementos já contaminados por interpretações de terceiros, para ir construindo uma teoria do leitor e da leitura. Vai, então, recompondo, repetindo (mas em diferença), remontando, deslocando, condensando, e configura-se em leitor guia, "leitor habilidoso" , que declara: "Ao ler um texto, minha memória aciona outros textos, mas nem todos me interessam naquele momento". Assim, como nos diz Flávio, o leitor é um corpo constituído pelas leituras efetuadas, constituído por um corpus. O leitor móvel, enquanto função, ocupa um entrelugar; é uma espécie de explorador do bosque da ficção, que, com textos selecionados e suas recepções, constrói a sua Casa das Letras/de letras, corpo que se visita.
Como já dissera eu em outra ocasião, pelo rigor teórico e pela escrita simples e sedutora, que nos convida a ir sempre um pouco além, e, ainda, pela originalidade da pesquisa, este livro é uma importante contribuição para uma teoria e uma história da leitura. Um belo texto, de ensaísta e de ficcionista, com leituras delicadas e precisas, dispensando a empáfia, a arrogância, a falsa erudição. Ensaios para leitores deste milênio, este livro quer também educar tais leitores, através da sedução da palavra, sem, entretanto, de maneira alguma aprisioná-los na Casa das Letras.



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