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O craque inventa o escritor
Eliana Yunes
Jornal do Brasil, 10/06/2006
Não creio que seja raridade o fato de escritores talentosos se debruçarem sobre temas tidos como menos nobres, embora ainda se perceba o velho preconceito que separa áreas dos saber aparentemente díspares: falar de esporte e cultura, de futebol e arte pode parecer a muitos algo indevido. No entanto, podemos falar numa seleção de craques, escritores bons de bola que têm colaborado para que a paixão nacional seja valorizada no que ela tem de imaginário, trazendo para o cotidiano das massas uma reflexão também estética.
A bibliografia já não é pequena, com coletâneas como a recém-lançada por Flávio Moreira da Costa, Vinte e dois contistas em campo, clássicos como as crônicas de Nelson Rodrigues, A pátria em chuteiras, e garimpos editoriais como a reunião de textos de Carlos Drummond, Quando é dia de futebol. E há outros tantos.
Em meio aos recentes lançamentos sobre o tema, desponta uma narrativa delicada, mas ágil e convincente para convocar e seduzir jovens leitores. Trata-se do livro de Flávio Carneiro, professor de literatura, crítico e ensaísta, que dribla os rótulos e uma vez mais escreve de um jeito que torna a leitura um exercício de afetos: Prezado Ronaldo, pequena coletânea de cartas ao Fenômeno, enviadas por um menino de periferia, Artur (mais conhecido como Pingüim), jogador de futebol de um time infantil da segunda divisão. Enquanto joga, estuda entre dois professores: o Aloprado, técnico do time e responsável pelas cenas mais hilariantes do texto; e seu Almeida, vizinho que funciona como pai, dono de uma biblioteca e que tem livros publicados.
A narrativa se constrói sobre um desejo duplo, que quer combinar "as astúcias dos pés com as mãos", como diria João Cabral: o menino sonha em ser um novo Ronaldo, mas também um craque cronista esportivo, como João Saldanha e Nelson Rodrigues. Isto mesmo, Pingüim leu esses autores - para surpresa da professora da escola. E a paixão de seu amigo e parceiro, Parede, por Raquel vai fazê-lo descobrir a poesia de Carlos Drummond de Andrade.
Flávio Carneiro toma o tom do adolescente e vai revelando sua estratégia de sedução, com uma escrita próxima da oralidade, ao jeito de Lygia Bojunga, evitando as interrupções de parágrafos e travessões, fazendo fluir o texto. Por outro lado, também vai revelando a estratégia de formação do leitor e do escritor das cartas a Ronaldo. Em sala de aula, ele ouve e conta histórias inventadas; na casa do amigo mais velho, que sugere cartas aos destinatários mais variados como exercício para pensar e escrever, vai nascendo uma intimidade com as palavras, um olhar observador do mundo, um ver pelo imaginário que acaba por contagiar o Parede, jovem amigo, a se tornar, sem culpa, co-autor dos poemas do itabirano.
O livro é um primor também para os adultos que se querem mediadores de leitura. Não por acaso, Flávio Carneiro é autor de um livro teórico sobre leitura e leitores de papel, intitulado Entre o cristal e a chama (EdUerj), sem falar dos demais infantis, como Lalande e O livro de Marco. A estes, vem juntar-se o seu Pingüim.
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