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O belo do outro lado da vidraça - A confissão, de Flávio Carneiro
Lucas Magdiel
Fórum de Literatura Brasileira, UFRJ, Rio de Janeiro, 2008 - www.forumlitbras.letras.ufrj.br
Ao se deixar levar pelo que sugere o título do romance de Flávio Carneiro, é
provável que o leitor desavisado suponha como alicerce da narrativa uma relação
confitente-confessor. Assim, imaginará, segundo reza o sacramento cristão da
penitência, o sujeito frente ao confessionário, pronto a declarar seus pecados ao
sacerdote. Se assim o fizer, não se equivocará totalmente - a relação estabelecida
é essa, de fato, mas a cena a ser imaginada é outra, atípica e, no mínimo, insólita,
pois quem se confessa é um seqüestrador, e o confessor, sua vítima. O
confessionário, um quarto num canto isolado do mundo, aresta do nada.
O narrador-confitente, anônimo, é mais que alguém com vontade de contar
uma história. Uma urgência o impele, tão visceral que se espraia nos deslimites da
violência; uma violência necessária, mas cujo sentido é inapreensível. E o terror se
instaura justamente na ausência de motivação visível: tendo a mulher seqüestrada
à sua frente, amarrada e amordaçada, o seqüestrador-narrador promete uma
madrugada insone, diluída no tempo e no espaço, que durará até que tenha
consumado sua narrativa. Firme em suas intenções, revelará à mulher, palmo a
palmo, o papel que ela desempenha, sem saber, na trama de sua vida. É esse
detalhe, aliás, que a torna o único interlocutor possível, abrindo-se e fechando-se
sobre ela o próprio ciclo narrativo, sendo ela a um só tempo o mistério e a chave
para decifrá-lo.
Não espere portanto o leitor uma confissão de culpa, uma simples declaração
de pecados por parte do confesso, e muito menos uma sentença por parte do
confessor. O peso da voz de quem narra se mede já pela primeira frase do livro: "A
senhora me escute, por favor". Na sutil imposição do pedido não há margem de
escolha. O outro - nessa condição pouco importando se a mulher ou o leitor, ambos
já capturados - ouve sim, mas a um eterno monólogo, que não ousa romper,
domado ambiguamente pela compaixão e pela curiosidade, e, no caso da mulher,
pelo medo em sua forma mais obscura.
Se na ausência da caracterização de um pecado o quadro ficcional foge da
tipicidade da confissão, uma vez que pecado implica transgressão de preceito
religioso (estando embutida na palavra uma racionalidade teológica estranha ao
texto), por outro lado se aproxima dela, na medida em que o relato que promete o
narrador tem compromisso com a mais pura verdade. Não uma verdade dada,
factível, mas outra, velada, que cede lugar à estranheza, ao fantástico, ao
extraordinário, de modo que mal se possam distinguir os ínfimos contornos entre
fantasia e realidade.
Assim, o narrador, pronunciadamente borgeano, não busca uma razão,
convencido de que a matéria de seu relato é pessoal e singular, e que não se pode
ouvi-la (ou lê-la) a partir dos frágeis princípios que assentam a realidade visível.
Em se tratando de uma "história de sombras", o próprio desejo de explicá-la, de
dar-lhe um sentido racional - adverte o narrador - é já uma violência.
O narrador, em sua viagem autobiográfica (ou melhor, confessional) através
do tempo de sua vida, mostra o percurso de um eu. Conta como aos dezenove
anos, desempregado, subsistia precariamente, sem grandes talentos ou
expectativas, com certa propensão a flâneur e refém de uma espécie de medo
existencial a lhe emperrar o sorriso. É uma subjetividade que vai se construindo a
partir de recortes sobrepostos da memória do narrador, cuja identidade é forjada
por meio de cenas entrecortadas do passado, em que desempenha um papel não
protagônico, mas passivo, diante da realidade e da própria vida.
A certa altura do relato, temos nitidamente o retrato de um sujeito
insatisfeito, disperso, confuso, que busca a todo o momento uma alternativa à
própria vida. O belo está fora de si mesmo: é o outro quem tem a sensibilidade, o
refinamento, a riqueza que ele não tem, mas que deseja ardorosamente possuir.
Portanto, a busca do narrador, reiterada em seu relato, está calcada na tentativa
de apropriação desse belo: quer apurar seu paladar grosseiro, quer refinar seu
olhar restrito, quer descobrir os sentidos cobertos. Assim, diante desse desejo de
sublimação, toda a mediocridade com a qual fatalmente se identifica lhe é ofensiva,
e dela, portanto, almeja se libertar.
O belo está sempre encarnado no outro, nas experiências, sonhos e memórias
alheias; designadamente, das mulheres que cruzam o caminho de seu olhar
itinerante. O feminino é a figuração do belo e a nuca das mulheres (afirma o
narrador saber lê-las), o espelho de sua identidade. É através de um olhar
perscrutador, voraz, que conhece Emma, personagem capital do romance, sendo
dentre suas múltiplas e heterogêneas personagens femininas aquela que se
constitui como o gérmen primeiro da intensiva transformação por que passa o
narrador, que a certa altura se descobre então portador de um poder impensável,
capaz de reconfigurar sua vida e seu próprio ser.
Até os homens comuns têm momentos de ousadia. É num desses momentos
que o narrador, enquanto personagem anacrônico de si mesmo, rompe a timidez e
ousa abordar Emma (que até então ignorava sua existência) à porta de um desses
restaurantes chiques da Zona Sul do Rio de Janeiro, e a convida para um almoço,
atitude que supõe crucial para a guinada em seu destino, sem o que estaria "fadado
para sempre à condição de simples admirador, a passar a vida do lado de fora,
olhando Emma pela vidraça". Isto é, Emma, aqui, é precisamente a encarnação do
belo, e a vidraça, o que separa o mar do mergulho. A aproximação e envolvimento
entre os dois mostra-se uma fatalidade, sim, mas condicionada a um passo da
vontade. E, a cabo, numa dinâmica entre prazer e morte, no tênue fio que separa a
vida da morte amorosa de Gautier, a relação amorosa passa a ser, então, o
instrumento que possibilita assimilação do alheio no que este tem de mais próprio,
singular e precioso (que tampouco se revele aqui o que é).
O fantástico - sabe-o bem a ficção contemporânea - empresta ao real as
formas da imaginação, freqüentemente muito mais vívidas e significativas que
aquelas apenas tangíveis pela nossa razão. Daí termos no livro de Flávio Carneiro
uma releitura do vampirismo, ficcionalmente aproveitada, mas também se
estendendo para um ponto além da literatura, refletindo-a. A paixão amorosa de
Stendhal, em De l'amour, romance citado no livro, aparece transformada em
condição infeliz, em paixão insaciável, que não pode ser apaziguada, esgotando-se
o ser na ausência de sentido, que o outro - nenhum - pode oferecer.
Por isso, embora seja possível - e proveitosa - a leitura do romance de Flávio
Carneiro apenas no âmbito da literatura de entretenimento, fica ainda à disposição
do leitor um vasto campo simbólico, imagético, próprio de uma literatura
metatextual, reflexiva e, por que não, lúdica, parodizante. E são várias as nuances
no texto a indicarem uma vereda mais ampla de leitura. Assim, simbolicamente
fértil é o fato de ser o narrador um ladrão de livros, isto é, que trafica livros,
literalmente, das bibliotecas públicas, universidades e livrarias, e os revende para
comer e pagar o aluguel - a subsistência precária de que falamos. Diga-se
literalmente referindo-se a uma outra leitura possível, metafórica, que diz da
condição do escritor contemporâneo, que, na relação ambígua entre mercado/arte,
é também, em certa medida, um hábil traficante de livros.
Confessa ainda o narrador o hábito invulgar de ler os cardápios suspensos no
exterior dos restaurantes chiques, a partir dos quais, baseado tão-só nos sons
evocados por um francês a ele ininteligível, procurava imaginar o desenho e as
cores dos pratos ali nomeados e consagrados. E é queixando-se de seu paladar
grosseiro, ou de sua falta de ciência, que não dá valor a uma possibilidade outra de
saborear, de experienciar - de ler, em sentido dilatado - passível de provocar,
ainda que insuspeitadamente, através da imaginação, a mesma leveza e o mesmo
sentido do belo associados à degustação do prato (ou, simbolicamente, ao
destrinchamento do texto literário).
Um dos maiores méritos de Flávio Carneiro é a hábil costura de formas e
sugestões com a linha cirúrgica do sentido: a narrativa trata de um homem
aparentemente comum, mais definível pelos seus defeitos que por suas qualidades:
é fraco, preguiçoso, grosseiro... Entretanto, não nos escapa uma característica
fundamental, inerente ao sujeito da narrativa: a inquietude, a insatisfação - que é
o que lhe permite ao menos saber que não sabe. É essa característica, pouco
sublinhada (por conta da pretensa subserviência ao destino), que dá sentido à
narrativa, desdobrada na voz de um sujeito partido em dois.
Ora, disse Freud que "o homem feliz não fantasia jamais, só o insatisfeito". A
insatisfação, nesse caso, serve tão bem à ficção quanto a realidade, possibilitando
um deslocamento necessário à vida. O artista, desde sempre um insatisfeito,
procura então preencher as lacunas da própria vida com palavras. E tanto maiores
as lacunas, mais espaçosas as palavras. Hauser entendia que, caso vivesse
intensamente, o artista não precisaria falar de seus sentimentos e, nessas
condições, até mesmo lhe faltariam palavras. Mas a vida - ficcionalizando-se a si
própria - não é intensificada em meio às palavras?
Assim, essas afirmações, em vez de nos conduzir a uma encruzilhada em que
o artista tem que escolher entre criar ou viver, explicitam a intenção de Flávio
Carneiro, que faz viver o artista dentro do homem comum, numa relação possível -
mas não explícita - do sujeito da narrativa com o próprio fazer literário. Seria
possível dizer mesmo que é uma afirmação dum viver radical em que as palavras
não faltam - mas sobram, transbordam. O próprio monólogo testemunha esse
excesso. Não reproduz a vida, e sim diz dela, como se fosse possível alhear-se e
apropriar-se da multiplicidade de imagens, sentidos e pensamentos que a
compõem.
Flávio Carneiro parece dizer, também, que a toda essa experiência - vital e
literária - não pode faltar certa pureza. Pois há uma pureza que nunca se esgota, a
saber, a pureza da arte, a partir da qual a experiência humana sempre se renova.
Afinal, não será a arte como os olhos da prostituta, "mantendo-se castos a cada
investida de cada desconhecido, noite após noite, na penumbra, os vultos se
sucedendo em fila enquanto as retinas guardam consigo, a sete chaves, seu
pequenino segredo"? Como dizia Fernando Pessoa, a literatura, como toda arte, é
uma confissão de que a vida não basta. De fato, a transbordamos. E há muito
deixou de ser pecado tal transbordamento.
Por fim, uma mirada atenta no narrador de A confissão o irmana com Funes,
o memorioso, ou Marco Flamínio Rufo, o imortal, ambos personagens de Borges. Os
três têm em comum o desânimo, o cansaço, o tédio da vida, quando, numa
culminância do destino, só lhes cabe instaurar discursividade a partir de suas
memórias sobrecarregadas de experiências. No caso de nosso anônimo confitente,
só ao final da narrativa nos é revelada sua escolha: não o sobre-humano, o
extraordinário, mas a fraqueza humana, sua miséria, e o cotidiano ordinário de
sobressaltos imprevisíveis. A confissão sacramenta, assim, o limite da mortalidade.
Mais: declara a culpa do homem, sem atenuantes. E a violência, esse excesso,
porta de entrada e saída de nossa triste condição.
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