|
Livro de estréia traz a experiência de situações surreais pelas ruas da cidade
Maria Fernanda Faria
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 14.05.1994
Todo livro de estréia acaba sempre por revelar um pouco a que influências seu autor está sujeito. É como se o sucesso da iniciação dependesse, em parte, destas mesmas influências. Sorte de Flávio Carneiro e de seu Da matriz ao beco e depois. Estavam em boas mãos: Calvino, Borges, Casares, Rubem Fonseca.
Rubem Fonseca, aliás, parece ser a grande inspiração, emprestando seu Mandrake a "Tardes de verão". No conto, o último do livro, Mandrake trabalha para a Mandrake & Fonseca - Investigações. Também a entrevista que Nelson Filho, alter-ego de Flávio Carneiro, concede ao Le Monde parece inspirada pelo conto "Intestino grosso" (Feliz ano novo).
Quase tão marcante é a presença de Italo Calvino. Nelson Filho comenta, no conto que leva seu nome, que "Calvino poderia ter escrito aquelas histórias sem usar as cartas". Não é gratuita a referência a O castelo dos destinos cruzados. Embora descarte a representação gráfica explícita do tarô, presente no livro de Calvino, Flávio Carneiro se vale, em muitos dos contos, das figuras mágicas, características do jogo. Há um micro-universo paralelo povoado pelas representações de pesadelo do jogo - o enforcado, o louco, a destruição, os amantes.
Em Da matriz ao beco e depois, caminhar pela cidade é caminhar por um longo trem-fantasma. E se deparar com situações surreais. Como no conto "Mercedes", em que a mão da protagonista se converte em nota musical, à semelhança de O cão andaluz, de Buñuel, em que nascem formigas da mão de um homem.
Em "Rua da matriz", primeiro conto do livro, Carneiro toma como paradigma a máquina inventada por Morel (personagem de Bioy Casares). Nele, o autor antecipa muitas das preocupações que irão ocupá-lo por toda a narrativa. Como a possibilidade de construir um mundo virtual, com pessoas que se assemelhem às reais mas que vivam também num espaço temporal suspenso. Como o narrador que sonha acordado com a construção de uma máquina possivelmente já sonhada, capaz de "recortar paisagens, de jogar com os astros, de remontar o tempo". Como a própria estrutura do conto, a indicar que o fim da rua é apenas o começo de uma viagem circular.
Uma viagem em que se está condenado a (per)seguir o outro, um outro duplo, numa espécie de jogo especular em que se persegue a si mesmo. Esta é a grande arte a que se aplicam os personagens de Da matriz ao beco e depois, dando pistas, muitas vezes falsas, e guiando em direção a casas que nem sempre têm suas portas fechadas. Portas que, quando abertas (ou arrombadas), conduzem o leitor a um intrincado labirinto que sustenta a ligação entre os contos. E que são responsáveis por seus caminhos que se bifurcam, fazendo esbarrarem-se os personagens, da Rua da Matriz ao beco, Praça da Bandeira, Cinelândia, Avenida Rio Branco...
Personagens cuja característica principal é o desamparo, obrigados a esbarrar a todo momento em seus próprios fantasmas. Ciganos, loucos assassinos, suicidas. Somos, em Da matriz ao beco e depois, habitantes de uma cidade construída segundo a desilusão de quem a descreve. Flávio Carneiro sobrepõe imagens fantásticas às do cotidiano, disfarçando-as, valendo-se de elementos surreais para digerir e superar a angústia.
Nem tudo, no entanto, é desconsolo. Como o narrador de "Rua da matriz", Flávio Carneiro finaliza seu livro-máquina - uma obra deliberadamente em construção - à espera de um leitor-operário, não de um leitor só espectador.
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|