Ilusionismo verbal em O Campeonato
Vera Lúcia Follain Figueiredo
Texto inédito, lido no seminário Perspectivas da Literatura Brasileira, hoje, ocorrido em 2004, na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Um número muito grande de narrativas policiais vem marcando o panorama literário e o cinematográfico ao longo das duas últimas décadas. Deste quadro, pode-se destacar uma vertente que retoma o subgênero para ajustá-lo às grandes inquietações que caracterizam o mundo contemporâneo - a trama, girando em torno de crimes variados, está a serviço da reflexão sobre o extremo ceticismo epistemológico, responsável pela desqualificação do real e pela perda de referenciais na cultura pós-moderna. A convenção do romance policial é, então, resgatada para que se fale de impossibilidades - a começar pela impossibilidade de levá-la a sério, de seguir à risca as regras que lhe seriam inerentes.
A literatura e o cinema relêem a tradição do romance policial, buscando os traços que, desde seus primórdios, já apontavam para a fragilidade das certezas que lhe deram origem. Edgar Allan Poe é revisitado, destacando-se, sobretudo, o caráter metalinguístico de alguns de seus textos, lidos, agora, num diapasão que paga tributo a Borges. Dialoga-se também com o filme noir da década de 40 e incorporam-se conquistas estéticas do melhor cinema europeu do pós-guerra, acirrando tendências que já estavam presentes nesse "cinema do simulacro", para usar a expressão de Deleuze. Se a literatura problematiza cada vez mais a enunciação, o cinema problematiza cada vez mais o olhar - ambos questionam sem cessar a premissa epistemológica da objetividade do mundo, trabalhando com a opacidade do significante, ressaltando sempre as mediações que produzem o visível, em contraposição à idéia da imagem ou do texto como registro imaculado de alguma coisa que a eles preexistisse.
Num tempo em que a afirmação da realidade como totalidade independente do sujeito é vista como "neurose fundamentalista, reação regressiva de defesa contra a babel pós-moderna das linguagens e dos valores", como quer Gianni Vattimo, o romance policial é citado para que sejam minadas as suas bases de sustentação, mais que isso, para pôr sob suspeita a pretensão, que subjaz a toda e qualquer narrativa, de imprimir um sentido aos fatos. O primado da interpretação, na modernidade tardia, em que se tende a associar verdade e totalitarismo, afasta a idéia de um conhecimento objetivo, abrindo espaço, tanto no cinema quanto na literatura, para um tipo de ficção na qual o grande crime de que se fala é o assassinato do real: os outros crimes que compõem o enredo tornam-se meros pretextos para que se aponte a falência de qualquer processo de investigação, porque não há nada a desvendar quando não há nada anterior aos discursos, nenhum referente externo. Se o crime foi sempre um tema recorrente na ficção, sua onipresença na produção atual, para além das exigências de ordem mercadológica, decorre da obsessão de tematizar o vazio de sentido causado pela perda do mundo verdadeiro.
O motivo do crime serve à focalização da crise de valores que torna obsoletas as polarizações que balizaram o pensamento moderno. Através dele se apontam as frágeis fronteiras entre o permitido e o proibido, chama-se atenção para o estatuto ambíguo da delinqüência num momento em que tudo se reduz a puro jogo de regras flutuantes. A economia dos capitais voláteis, da valorização artificiosa das ações de grandes empresas, das fraudes contábeis, as guerras permanentes, que, como observou Hobsbawm, não têm início declarado e nem tampouco um fim definido, ou a guerrilha eterna, que já não visa conquistar o poder, são manifestações desse movimento no qual tudo gira sem possibilidade de ancoragem.
Daí decorre um tipo de narrativa que faz questão de se denunciar como mero truque ilusionista, zombando do leitor ou do espectador que não desconfia do que lê ou do que vê, que tende a absolutizar as versões que lhe estão sendo apresentadas no texto ou na tela. À diferença das inúmeras obras que, no passado, já trabalhavam a questão do relativismo da verdade, a ficção atual não apenas tematiza o problema, mas se estrutura a partir dele, fazendo o público perder-se no labirinto de desmentidos em que esta ficção se constitui. A narrativa encerra a sua própria negação: denuncia-se como arbitrária, evidenciando seu descolamento de qualquer referente, ao mesmo tempo em que não abre mão de sua capacidade de iludir. O resultado é que tanto a percepção sensorial quanto a racionalidade do leitor ou do espectador são desafiadas, restando-lhe a impressão de que é incapaz de dar conta do que está diante de seus olhos, "vítima da distração invencível dos olhares", para usar uma expressão de Foucault.
No cinema, tira-se partido do fato de que, apesar de tudo estar explícito na superfície da imagem, nem por isso se consegue apreender aquilo que importa, porque um objeto só se transforma numa pista se o olhar lhe conferir esse valor. Destaca-se, assim, o abismo entre o que é mostrado e o que se vê: "no hay banda", dirá repetidas vezes um personagem do filme Mulholland Dr.1, de David Linch. O personagem, que apresenta um espetáculo de teatro, repetirá a frase, chamando a atenção para a voz que se desprende do corpo que a emitiu e se reproduz nos discos, podendo ser associada pela mímica a um outro corpo que dela se apodera. Se tudo se descola da origem, se não há mais uma origem identificável, não há também lugares fixos, identidades fixas, só o constante deslizamento de vozes intercambiáveis que oscilam de um corpo a outro. Todos podem assumir o lugar vazio do primeiro intérprete porque a música se automizou: "no hay banda", mas o show continua.
Ninguém prenunciou mais esta atmosfera e as mudanças que ela imprimiria à narrativa do que Jorge Luis Borges, a ponto de sua poética, disseminada em escritos ensaísticos e semi-ensaísticos, inspirar uma nova visão da literatura e do lugar que ela veio ocupar nas sociedades modernas, como encontramos em uma série de pensadores como Foucault, Derrida, Umberto Eco, Jauss dentre outros2. Assim, será o escritor argentino quem, já em 1941, no Prológo a "O jardim dos caminhos que se bifurcam", afirmará:
Desvario laborioso e empobrecedor o de compor vastos livros; o de explanar em quinhentas páginas uma idéia cuja exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que estes livros já existem e apresentar um resumo, um comentário3.
Seguindo a opção pelo comentário, Borges vai debruçar-se também sobre livros que de fato foram escritos. D.Quixote , por exemplo, é um tema recorrente nos textos do escritor argentino e, talvez, as considerações que tece sobre o romance digam mais sobre a sua própria literatura do que sobre a de Cervantes. A partir da leitura de D.Quixote, afirma o fascínio pelo maravilhoso e reitera sua rejeição à causalidade histórica que presidia a literatura realista do século XIX. Nesse sentido, ao dizer que "intimamente Cervantes amava o sobrenatural"4, está falando sobretudo de si mesmo. Por isso faz questão de ler D.Quixote não como um antídoto das novelas de cavalaria mas como "uma secreta despedida nostálgica".
Borges, partilhando com Cervantes a impossibilidade de transportar-se para os cenários grandiosos de Ariosto, de narrar ingenuamente as aventuras de Simbad, vai elogiar no escritor espanhol a capacidade de recriar o maravilhoso de maneira sutil. Em D.Quixote, a magia retorna pela porta dos fundos de uma ficção que, tematizando a rendição do herói à força do prosaico, na verdade recupera o mistério pelo viés da estrutura em abismo que desestabiliza as fronteiras entre o real e a ficção e, assim, acaba por consagrar a vitória do herói, a despeito do sentimento de fracasso que dele se apodera ao final da vida. Diz, então, o escritor argentino:
Por que nos inquieta que o mapa esteja incluído no mapa e as mil e uma noites no livro de As Mil e Uma Noites? Por que nos inquieta que Dom Quixote seja leitor de Quixote, e Hamlet, espectador de Hamlet? Creio haver dado com a causa: tais inversões sugerem que se os personagens de uma ficção podem ser leitores ou espectadores, nós, seus leitores ou espectadores, podemos ser fictícios.5
É pelo jogo de espelhamento entre as posições do autor, do personagem e do leitor que a fantasia volta para desregular a boa relação da ordem do discurso, recusando-se a divisão que organiza a ficção dentro da realidade.
É essa a lição que Borges vai buscar no autor espanhol - estender os limites da ficção até que ela inquietantemente abarque tudo, inclusive o leitor, tornando-se a única dimensão existente, apesar de ser apenas um sonho:
"O maior feiticeiro (escreve memoravelmente Novalis) seria o que se enfeitiçaria até o ponto de tomar suas próprias fantasmagorias por aparições autônomas. Não seria esse o nosso caso?" Conjeturo que assim é. Nós (a individida divindade que opera em nós) sonhamos o mundo. E o temos sonhado resistente, misterioso, visível, ubíquo no espaço e firme no tempo; porém aceitamos em sua arquitetura tênues e eternos interstícios de sem-razão para saber que é falso.6
Daí que em "Parábola de Cervantes e de Quixote"7, Borges traça um paralelo entre a vida daquele autor e a de seu personagem, equiparando criador e criatura: Cervantes, um velho soldado, farto de sua terra de Espanha teria procurado consolo nas vastas geografias de Ariosto, ideando um homem crédulo que perturbado pela leitura de maravilhas dispôs-se a buscar proezas em lugares prosaicos. Diz, então, Borges:
Para os dois, para o sonhador e o sonhado, toda essa trama foi a oposição de dois mundos: o mundo irreal dos livros de cavalaria, o mundo cotidiano e comum do século XVII.
Não desconfiaram que os anos acabariam por limar a discórdia, não desconfiaram que a Mancha e Montiel e a magra figura do cavaleiro seriam para o futuro não menos poéticas do que as etapas de Simbad ou as vastas geografias de Ariosto.8
Isto é, Borges afirma a leitura como a instância que reencanta o mundo desencantado, como uma esfera que se autonomiza mantendo viva a ficção literária. Por isso vai considerar obsoleta a prática de escrever romances - lendo, como faz Menard, nós os reescrevemos. E não devemos supor que essa reescritura ou essa tradução seja inferior à obra original, pois todo texto seria rascunho, já que não pode haver nada mais do que rascunhos: "o conceito de texto definitivo não corresponde senão à religião ou ao cansaço", dirá ele.
Os textos de Borges antecipam, dessa forma, aquela tendência da literatura contemporânea para assumir-se como um jogo de espelhos, expondo sua impotência para fazer as palavras representarem a realidade, evidenciando seu ceticismo face à pretensão ocidental de retratar artisticamente essa realidade para transformá-la.
É nessa vertente que se inclui o livro O campeonato, de Flávio Carneiro. O campeonato é um romance que põe em cena o leitor. O leitor é seu grande personagem. Por isso, o livro dialoga com a tradição literária - não só com o conto de Rubem Fonseca que lhe dá o título, mas também com D.Quixote, Mme Bovary, com a ficção de Borges e com a própria história do romance policial. Assim, a dupla André e Gordo nos lembra os personagens de Cervantes, mas também evoca outra dupla famosa Sherlok Holmes e Watson, só que com os sinais invertidos, porque no caso de O campeonato, o auxiliar é mais astucioso e mais ativo do que o detetive.
Demissionário da chamada realidade, André, o personagem principal, é um leitor que deseja passar para o outro lado do espelho. Como D.Quixote, quer viver a literatura, e, ao tornar-se detetive, sonha aproximar-se do universo de seus textos preferidos, os romances policiais. Renegando o pragmatismo sem emoção que costuma pautar o cotidiano das pessoas comuns, é visto como um desajustado, um irresponsável, e acaba perdendo seu emprego numa biblioteca por causa do estranho vício que o domina: gostar de ler.
Suas peripécias, entretanto, vão levar o leitor do livro a indagar se existem mesmo esses dois lados do espelho, isto é, se é possível separar realidade e ficção. E é aí que vai residir todo o perigo que ameaça não só o personagem mas também o leitor. O maior risco não está em negar a realidade para tentar viver como se estivéssemos no mundo ficcional. Está em descobrir que não existe esta fronteira, que não existe nada além da representação e que podemos deslizar das páginas do livro para a "realidade" e vice-versa sem qualquer obstáculo, pois não há nenhuma diferença essencial entre essas duas esferas. Daí que André, que só lia ficção e não lia jornais, vai acabar se interessando cada vez mais pelos noticiários. Da mesma forma, o romance, diluindo a oposição entre o mundo dos empresários pragmáticos e o dos sonhadores como André e o Gordo, vai reiterar a idéia de que tudo é ficção.
Quando o personagem principal, no início do romance, declarava que a vida real não lhe interessava, partia do pressuposto de que existia uma realidade a ser rejeitada. Ao final do livro, entretanto, vai perder essa cômoda certeza - perda que põe em risco a própria sobrevivência da ficção, que afinal só existe em contraposição à realidade:
Agora eu estava no volante de um carro importado, feito sob encomenda, vestindo terno e gravata, barbeado, perfumado, e com uma pistola enfiada no cinto da calça. Ouvia música clássica no rádio e via a mata atlântica exuberante lá fora, pela janela. Era uma cena de romance, eu não podia estar vivendo aquilo, de verdade. Eu precisava de uma prova de que estava vivo, na vida real, de que aquilo era vida real e não mais um dos meus sonhos malucos, então dei um grito alto.
A desqualifificação do real gera, então, a desconfiança nas respostas tradicionalmente oferecidas pelo chamado romance de enigma, articuladas pela crença na razão como chave para o conhecimento da realidade. Em contrapartida, vai levar o autor a privilegiar o que, nesse subgênero, é o germe de sua própria negação, constituindo o seu caráter potencial de metaficção: na origem das histórias policiais está uma questão filosófica - a busca da verdade, a reflexão sobre as formas de atingi-la - e, também, algo que chama a atenção do leitor para o aspecto construído dessa verdade, ou seja, as artimanhas do discurso lógico, o artificialismo de suas convenções, a face de jogo, de quebra-cabeça. Se o romance policial pode ser lido como "a gesta do espírito humano em luta com um mundo opaco9," pode, por outro viés, ser considerado como a alegoria do escritor dispondo e redispondo aparências - é esse aspecto da narrativa de enigma, cuja matriz está na ficção de Edgar Allan Poe, que será acentuado no livro de Flávio Carneiro.
Podemos, então, dizer que essa retomada do romance policial, ao realizar-se como uma submissão transgressiva e bem-humorada às regras do gênero, aponta para a continuidade de uma atitude crítica, adequada, entretanto, a um tempo pouco afeito a antagonismos rígidos, a rupturas radicais com parâmetros do passado - parâmetros que, ao contrário, esse tempo não exclui, mas incorpora e ressemantiza.
1 Produzido em 2001. O filme recebeu no Brasil o título de Cidade dos Sonhos.
2A respeito do papel exercido por Borges como precursor do ideário ficcional da pós-modernidade, ver as considerações de Eneida Maria de Souza em seu livro O século de Borges. Belo Horizonte: Autêntica, 1999.
3 Ficções. São Paulo: Círculo do Livro, 1975, p. 9.
4 Idem. Otras Inquisiciones. Buenos Aires: 1960, p. 66.
5 Idem, ibidem, p. 68
6 Borges, Jorge Luis. Discussão. São Paulo: Difel, 1986, p. 102
7 Idem. O Fazedor. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1995, p.35.
8 Idem, ibidem, p.35.
9 Boileau, Pierre e Narcejac, Thomas. O romance policial. Trad. Valter Kehdi. São Paulo: Ática, 1991.
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