|
Ignorância e imortalidade
Sérgio de Sá.
Correio Brasiliense. Brasília, 27.01.2007.
Ao escrever um romance sobre a memória, Flávio Carneiro fez também uma profissão de fé na arte de contar histórias. A confissão é o monólogo de um seqüestrador atípico que clama por atenção. Não há um resgate monetário em jogo. A seqüestrada e, conseqüentemente, o leitor só tomam conhecimento da demanda ao final da narrativa. E, nesse ponto, o pagamento já terá sido feito pelo próprio seqüestrador de maneira paradoxal: uma ficção sedutora, um texto que devolve em convincente narrativa as experiências de ida e morte do narrador sem-nome.
Colocado no lugar da seqüestrada e privado, assim, do direito de se pronunciar, o leitor é convidado na primeira frase a ouvir: "A senhora me escute, por favor". O que vem em seguida é como um bildungsroman tardio: a construção do conhecimento de um jovem adulto. Apenas um detalhe, que o resenhista abre mão de contar por inteiro para o livro não perder parte de sua graça: o acúmulo de cultura se dá após a morte da parceira sexual da vez. Isto é, o narrador leva o caldo, mas alguém sofre o único fato inevitável da vida, seu fim.
O grande mérito de Flávio Carneiro é manter a respiração de frases e parágrafos por mais de 200 páginas sem deixar ao leitor o mínimo motivo para cansaço. Esse narrador que vive para poder narrar recupera a paixão pelo relato de modo carnal: "Vivi o passado e o presente de outras vidas, herdei delas o futuro apenas esboçado, dei forma a cada um desses futuros, acolhi a todos dentro de mim e com eles construí castelos inimagináveis." Ora, A confissão é um pedido para que não se deixe a literatura morrer, nem que para isso seja necessário prender o leitor a uma cadeira... Trata-se da narrativa desesperada de um homem incomum, um ladrão barato de livros que descobre ter algo diferente do que seria normal. Ele mata o objeto de paixão sem nunca ser incriminado. Não há quaisquer vestígios de sangue, não há pistas a seguir, só existe a vida adiante, com um horizonte de expectativas ampliado.
As personagens femininas que cruzam o caminho do narrador (sem se dar conta do perigo que correm) possuem ressonâncias literárias: Emma, Inês, Alice, Agnes. Elas não têm medo - ou são conduzidas a esquecê-lo temporariamente. O narrador, aos poucos, também perde o temor de viver. À medida que seu conhecimento das coisas aumenta, seu medo diminui. A vida parece mais fácil quando se sabe, por exemplo, apreciar um vinho ou desfrutar das belezas naturais.
A confissão coloca em pauta um tema importantíssimo para o homem contemporâneo, qual seja, a diferença entre a ignorância, que o mantém na passividade (facilmente manipulável, pois), e a educação dos sentidos, que abre perspectivas surpreendentes e leva à ação.
Para Flávio Carneiro, a experiência de contar e ouvir histórias está entre as mais férteis para nos tirar da barbárie - no Rio de Janeiro, em Lisboa ou nos cafundós da China, lugares por onde passa seu curioso narrador - seqüestrador, sempre disposto a sugar algo do corpo das mulheres com o conseqüente enriquecimento de sua bagagem física e mental. Memória, afinal, é tudo o que temos. Até que a morte nos separe.
TRECHO "Se um dia fosse escrever um livro seria sobre o medo, não um romance de bolso, ou de estante, ou seja lá do que for, nem de poemas, não gosto, um livro de gênero indefinido, anotações, um livro de anotações que tentassem responder à pergunta: por que as pessoas sentem medo? Juntaria algumas das minhas experiências e delas tentaria tirar alguma verdade, encheria trezentas páginas listando todos os tipos de medo, e todas as divagações possíveis sobra cada tipo, o medo de atravessar a rua, de dormir no escuro, de altura, de mordidas de bichos, o medo dos bichos, a senhora tem medo de algum bicho?, eu antigamente tinha medo de aranhas, na verdade tinha medo dos bichos que não têm sangue, aranha tem sangue?, eu achava que não, e isso me deixava amedrontado, saber que existia no meu quarto todo um batalhão de seres em cujo corpo não corria sangue, isso era assustador, aqueles monstros que pareciam rabiscos, uns traços se movendo pelas paredes, no escuro, enquanto eu não dormia.Mas o meu livro, eu ia dizendo, meu livro seria uma tentativa de convencimento, uma tese, a minha tese seria: as pessoas sentem medo porque estão vivas. Pode ser?"
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|
|