Flávio Carneiro
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Gol de letra
Elieser Cesar
www.eliesercesar.wordpress.com, 28.04.2009

Quem pensa que entre o futebol e a literatura existe a mesma distância abismal que separa o campeão do lanterninha do Campeonato Brasileiro (só para pisar nos nossos gramados), deve ler o livro Passe de Letra – Futebol e Literatura , do escritor goiano Flávio Carneiro.
Com a polivalência de quem chuta com os dois pés, na ficção e no esporte mais popular do planeta, o autor, que só não se profissionalizou no futebol porque a musa extra-campo falou mais alto, reúne no livro um plantel de crônicas escritas entre 2007 e 2008, para o jornal de literatura Rascunho, de Curitiba. Com isso, se junta a um time que fez a boa tabelinha entre a bola e o livro, que inclui craques da estirpe de Nelson Rodrigues, Paulo Mendes Campos, Armando Nogueira e – para muitos leigos na alquimia entre as redes e as palavras – Albert Camus.
É justamente de Camus, que também foi goleiro (quem quiser se aprofundar na relação do autor de A peste com o futebol basta ler o romance inacabado O primeiro homem), a epígrafe do livro de Flávio Carneiro: “O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol”. Redonda verdade, afinal, sabe-se lá o que se passa na cabeça do atacante ou mesmo de um goleiro no momento, crucial e inapelável, da cobrança de um pênalti em decisão de Copa do Mundo, só para ficar no exemplo mais extremo?
Ainda no primeiro tempo, Carneiro, que no início dos anos 70 foi campeão goiano na categoria Tampinha (até 12 anos), pelo emblemático Selefama Esporte Clube, empatando em 0×0 com a equipe do poderoso Goiás, demonstra que o jogo narrativo e a arte (nada fácil) de empurrar com o pé uma bola para dentro do gol podem formar uma afinada dupla de ataque e fazer tabelinhas inimagináveis. Diz o autor na crônica “Futebol & Literatura”:
Como o futebol, a literatura também é um jogo. E, como jogo tem suas regras. Você pode transgredir uma ou outra mas não vai poder transgredir todas. O escritor inventa dentro d e certos limites, a começar pelos próprios limites da língua. Guimarães Rosas burlava algumas regras da gramática oficial, mas o que ele escrevia, claro, era português. Na verdade, ele criava uma espécie de gramática própria dentro da língua portuguesa, quer dizer, inventava um jogo – com as regras que ele mesmo foi criando e o leitor aceitou.

No futebol e na literatura as regras funcionam apenas para tornar possível a chegada do inusitado. Um bom romance é aquele que você sabe como começa, mas não sabe como vai terminar. Se já sabe, nem vale a pena ler. Um bom romance é um a caixinha de surpresa. Uma partida de futebol é a mesma coisa. , com a vantagem, do futebol, de que mesmo uma partida ruim é imprevisível, ao contrário de um romance .
Se o leitor também joga futebol, com aquela certeza axiomática de que o campo é um ringue de vale tudo e não comporta gestos desprendidos, deve ler a crônica “O último jogo”, em que um ponta direita se deixa, de propósito, apanhar de um lateral esquerdo,para que este, já desmoralizado durante a partida, não acabe ainda mais humilhado pela própria torcida.
Pananan….nanammmm…pananan… Os saudosistas terão direito a vídeo-tape na crônica “Canal 100” sobre o telejornal esportivo, criado por Carlos Niemeyer e exibido antes das sessões de cinema. Em “Histórias possíveis”, Flávio Carneiro elenca uma série de jogadas que renderiam um bom enredo, a começar pelo drama do goleiro Barbosa, apontado como o responsável pela derrota do Brasil, por 2×1, frente ao Uruguai, na final da Copa do Mundo de 1950, em pleno Maracanã abarrotado por um público de quase 200 mil torcedores. E conta um episódio que muitos marmanjos metidos a enciclopedistas do futebol desconhecem: não foi contra o Vasco da Gama, mas sim diante do modesto Botafogo da Paraíba que Pelé fez o seu milésimo gol. Segundo o autor de Passe de letra , houve um erro de cálculo, pois, o pênalti que o goleiro Andrada não pegou (ou por pouco não pegou, como preferem os vascaínos, o que dá mesmo placar) foi, na verdade, o gol de número 999 do Rei Pelé.
Na crônica “O Narrador”, Flávio Carneiro alça os locutores de futebol ao status do clássico contador de histórias do ensaio homônimo de Walter Benjamin, só que alojados numa cabine de rádio ou de TV, e não ao pé de uma fogueira, rodeados de uma platéia atenta, como os antigos contadores de histórias.
Professor de literatura e roteirista, radicado no Rio de Janeiro, Flávio Carneiro tipifica os personagens reais do futebol, de acordo com as tradicionais categoriais da literatura: épico (Pelé), trágico (Barbosa), lírico (Garrincha) e cômico (Dadá Maravilha). Conta ainda casos pitorescos como o do lendário Neném Prancha, roupeiro e depois técnico do Botafogo (o clube de coração do cronista), na década de 1950, autor de frases antológicas como “o pênalti é tão importante que devia ser cobrado pelo presidente do clube”, “se concentração ganhasse jogo, o time do presídio não perdia uma” e (definição precisa como um lançamento de Gérson) “jogador é o Didi, que joga como quem chupa laranja”. Poderia incluir uma do (lírico ou cômico?) Baiaco, eterno craque do Bahia, que ao ser indagado como ficaria o tricolor baiano sem a presença dele em campo, teria respondido: “O Bahia joga bem comigo ou semigo.
Mas paremos por aqui, porque já estamos nos descontos. Fiquem com o passe de letra nesta partida lítero-futebolística de FCFC (Flávio Carneiro Futebol Clube).
Apito final: Durante a 9ª Bienal do Livro da Bahia, autor dessa resenha participou de um “bate-bola” sobre futebol, na Arena Jovem, ao lado de Flávio Carneiro e do comentarista esportivo Oscar Paris. Foi um baba divertido ou uma pelada animada como quiserem.

Elieser Cesar é jornalista e escritor, autor de O azar do goleiro (Contexto), dentre outros livros, e mora em Salvador.



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