Flávio Carneiro
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Entre a bola e a palavra
Henrique Marques-Samyn
Revista Speculum, www.speculum.art.br, 27.09.2009

Na crônica "O louco de Buenos Aires", Flávio Carneiro descreve seu singular encontro com um patético torcedor do Boca Juniors que, uma vez por mês, vestia a camisa do arquirrival, o River Plate, e postava-se durante horas numa praça, em silêncio. El Loco, como era chamado, pacificamente permanecia, desde que não fosse provocado - o que poderia transformá-lo numa figura feroz, disposta a atacar (a pedradas!) o perturbador de seu incomum ritual. É possível entrever nesse louco uma alegoria para o tema de Passe de letra (Rocco, 2009), coletânea de crônicas que aborda menos o futebol como esporte do que a paixão pelo esporte britânico que veio encontrar, nos pés brasileiros, vários de seus maiores mestres; uma paixão que, de fato, não raro tangencia a loucura, e cujas múltiplas manifestações - a paixão por estar em campo, por assistir ao jogo, por torcer para um time - são registradas, com matizes literários, nos textos que constituem o volume. Obrigado, a certa altura da vida, a escolher a bola ou a palavra (ou seja: a optar por profissionalizar-se como jogador de futebol ou a investir na carreira de escritor), Flávio nem por isso deixou de cultivar as duas paixões; Passe de letra nasce precisamente dessa convergência. .
Embora esse não seja um livro destinado unicamente aos amantes da bola - há, por outro lado, diversos textos nos quais transparece uma especial preocupação em apresentar elementos futebolísticos aos que não estão com eles familiarizados -, os peladeiros e torcedores serão os que decerto compreenderão melhor a face boleira de Flávio, sua trajetória como ponta-direita do Selefama de Goiânia, seu encanto pelo peculiar fraseado futebolístico. Um dos mais inspirados momentos da obra é dedicado a uma figura que, sem dúvida nenhuma, apenas os que de fato acompanham o esporte conhecem bem: o narrador - não qualquer narrador, mas especificamente aquela voz que vem do radinho de pilha, definido por Flávio Carneiro como o responsável por construir a narrativa do jogo, concedendo-lhe a necessária inflexão para fazer da partida, no momento certo, uma tragédia ou uma comédia. .
Mas o autor é, inevitavelmente, também um torcedor - no caso, um apaixonado alvinegro, que dedica uma crônica inteira a dissertar sobre a experiência única de torcer pelo glorioso: "Se torcer para um time de futebol é sempre uma aventura", afirma Flávio Carneiro, "torcer para o Botafogo é um pouco mais que isso". Prova disso é a série de eventos listada na crônica que só poderiam, mesmo, ter acontecido com o Botafogo - como as ocasiões em que o time entrou em campo com camisas azuis, verdes ou amarelas; ou como o inacreditável jogo, no Campeonato Brasileiro de 2008, em que o time teve um jogador e o presidente presos em pleno gramado. Aliás, a paixão de Flávio talvez explique a única falha do livro: a ausência de menções ao America. O time mais lírico já nascido em terras cariocas é mencionado apenas uma vez, e ainda grafado com acento - 'América' (sic!) -, verdadeiro acinte à tradição rubra. Contudo, talvez haja algo de atávico nesse equívoco: uma das mais belas páginas da história americana foi escrita no campeonato de 1929, quando o escrete alvinegro contestou uma derrota sofrida para o America, por 1×0; disputado um novo jogo, a "Maravilha rubra" venceu o Botafogo pelo singelo placar de. 11×2. O resenhista, afinal, também é um torcedor. .



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