Flávio Carneiro
Comentários
Dos muitos perigos de se ler ficção
Vera Lúcia Follain de Figueiredo
O Globo. Rio de Janeiro, 31.08.2002

É curioso como o romance, desde seu nascimento, alimenta-se de uma grande contradição: não se cansa de alertar o leitor para os riscos que se corre ao ler ou escrever ficção, fazendo uma espécie de autodenúncia ao chamar a atenção para os malefícios que ele próprio pode causar. Assim, ao hábito de ler romances de cavalaria, se atribui todo o infortúnio de Dom Quixote, como a desgraça de Madame Bovary decorre do fato de se deixar envolver pelos sonhos da ficção romântica. Esta mesma literatura teve também sua contribuição para o triste fim de Policarpo Quaresma e lembremos, ainda, que, por ser autor de narrativas policiais, o personagem Quinn, de Paul Auster, acaba por viver as mais insólitas situações.
Da mesma forma O campeonato adverte: ler ficção, sobretudo a de temática policial, pode levá-lo ao crime, seja como vítima, seja como assassino. Todos os impasses de André, personagem narrador do livro de Flávio Carneiro, vêm do fato de ser um devorador da literatura detetivesca e de resolver, como Dom Quixote, viver aventuras semelhantes às que povoam seus livros prediletos. Demissionário da chamada realidade, André é um leitor que deseja passar para o outro lado do espelho, tornando-se personagem principal de uma grande história. Renegando o pragmatismo sem emoção que costuma pautar o cotidiano das pessoas comuns, é visto como um desajustado, um irresponsável, e acaba perdendo seu emprego numa biblioteca por causa do estranho vício que o domina: gostar de ler.
Suas peripécias, entretanto, vão levar o leitor do livro a indagar se existem mesmo esses dois lados do espelho, isto é, se é possível separar realidade e ficção. E é aí que vai residir todo o perigo que ameaça não só o personagem mas também o leitor. O maior risco não está em negar a realidade para tentar viver como se estivéssemos no universo ficcional. Está em descobrir que não existe esta fronteira, que não existe nada além da representação e que podemos deslizar das páginas do livro para a "realidade" e vice-versa sem qualquer obstáculo, pois não há nenhuma diferença essencial entre esses dois mundos. Daí que André, que só lia ficção e não lia jornais, vai acabar se interessando cada vez mais pelos noticiários.
O campeonato é um romance reflexivo que dialoga com a tradição do gênero policial, citando textos, nomeando os precursores. Seu grande tema é a leitura - é a partir dela que se praticam todos os crimes, inclusive os contra a autoria, contra o copyright, já que, se o imaginado e o vivido se confundem, torna-se quase impossível trabalhar com direitos autorais - como suspeitava Borges, na ordem da literatura, como nas outras, não há ato que não seja coroação de uma infinita série de causas e manancial de uma infinita série de efeitos, o que acaba por negar os limites do sujeito.
Tendo como personagem principal um leitor, este último livro de Flávio Carneiro rende homenagem a vários autores, dentre eles Edgar Allan Poe, Agatha Christie, Dashiell Hammet, Paul Auster. Mas o grande homenageado é Rubem Fonseca, autor que influenciou toda uma geração de escritores brasileiros como mestre na arte de "inventar o real, de tornar verdadeira uma vida falsa, ou mais relevante ainda, falsa uma vida verdadeira", como diz um de seus personagens, no conto "Romance Negro". De uma forma muito bem humorada, sem nenhuma "angústia da influência", Flávio Carneiro parte do conto "O campeonato", de Rubem Fonseca para construir sua história, que é ao mesmo tempo uma reescritura do conto.
O campeonato inscreve-se na vertente da narrativa contemporânea que retoma o gênero policial para abalar os pressupostos que lhe deram origem e, através desse procedimento, tematizar o ceticismo de um tempo em que a desqualificação do real corrói todas as certezas. A literatura, assim também como o cinema, dobra-se sobre si mesma, em função da descrença na existência de um referente externo capaz de legitimar os fatos narrados. Sem abrir mão de seduzir o público, essa estética ilusionista, que se denuncia como jogo, como truque, diverte o leitor e, com fina ironia, o autor também se diverte, deixando o leitor sem chão, em meio a uma profusão de imagens que se superpõem, entregue à vertigem de um mundo sem referenciais fixos.
Depois de percorrer avidamente as páginas do romance de Flávio Carneiro, fechamos o livro com a incômoda sensação de que somos apenas personagens de uma trama tecida pelo acaso, cujo sentido final nos escapa. Por isso, toda investigação se torna circular. Como André, o personagem principal de O campeonato, os leitores de narrativas policiais estão sempre buscando, quixotescamente, a ilusão de que existe uma explicação lógica para a gratuidade da vida.



Outros Comentários



Voltar