Flávio Carneiro
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Diálogos intensos entre autor e leitor
Luíz Horácio.
O Globo. Rio de Janeiro, 19.11.2006.

O Assalto é o título de um conto do Moçambicano Mia Couto.É a história de um velho que assalta um homem, à mão armada, com o fim único e exclusivo de conversar. Estabelecida uma pretensa familiaridade, a vítima avisa que no dia seguinte tornarão a se encontrar e que o velho não precisará mais assaltá-lo. E este responde: " Não faça isso.Me deixe assaltar o senhor. Assim me dá mais gosto."
A necessidade do outro, do mero ouvinte ou daquele que vai legitimar a narrativa, também é um dos aspectos mais evidentes em A Confissão, romance magnificamente construído por Flavio Carneiro. Dividido em dois blocos, passado e presente, que dialogam por meio de uma intensidade extraordinária, o autor contrapõe ausência e presença, inquietude existencial e um permanente sentimento de solidão,dor e prazer, vida e morte.
A Confissão descreve o vasto manancial de vicissitudes na vida de um homem que seqüestra uma mulher com a finalidade de contar-lhe a história de sua vida. Na verdade o seqüestrador precisa de algo que a mulher possui e não é um bem material. Mas o ponto alto deste romance de Flavio Carneiro é a coexistência harmoniosa do fantástico, do extraordinário com o tradicional a orientar as histórias que o narrador vai relatando à vitima que não emite uma palavra sequer. No fundo, agitadas histórias de amor, se examinadas pela ótica de um homem que dorme uma única vez com as mulheres e elas morrem. Morrem de amor.
O leitor pode relacionar a história do seqüestro com as outras que o seqüestrador vai contando para sua prisioneira e perceberá que no primeiro plano temos o ambiente claustrofóbico, atmosfera densa, ausência de movimentos e expectativa no sentido de descobrir as intenções do seqüestrador. Já nas histórias que ele conta o que não falta é ação, movimento. Um homem em busca de si mesmo, um homem tentando abrandar sua agonia.
E nessa busca ele viaja. Decidido a não provocar outras mortes, embora permaneça impune, sai do Rio e percorre vários países até encontrar um suposto sossego num povoado chinês. Sem sucesso pois inclusive nessa aldeia ele faz uma vítima. Importante ressaltar que na relação do protagonista com a cidade,o autor revive, porém com alta dosagem de angústia, o flanêur baudeleriano, Flavio Carneiro permite ao leitor contato com um livro sério, não confundir com sizudo, por favor!; um texto digno do que disse Ítalo Calvino: "A literatura deve pressupor um público que é culto,mais culto do que o próprio escritor." Esta, infelizmente, é uma prerrogativa cada vez mais rara, por isso quando o leitor se depara com um livro do porte de A Confissão tem a obrigação de uma leitura minuciosa até o esgotamento das inúmeras possibilidades que o autor oferece.
Por exemplo: podemos entender que a necessidade do seqüestrador, anteriormente roubava livros, ao capturar a mulher com a finalidade de contar-lhe histórias, seja a mesma necessidade que um escritor tenha de que seu livro alcance um significativo número de leitores. Parece bobagem, mas literatura só se legitima com leitores. É no detalhe que as grandes obras se consumam, o detalhe da seqüestrada fazendo às vezes do leitor ideal, do ouvinte perfeito, é a combinação de seriedade com delicadeza que faz de A Confissão um livro fascinante.
No final, tudo se resume a uma frase, e graças a ela a literatura sobrevive. A frase do seqüestrador: "Ainda hoje acredito nessas palavras mágicas: quer ouvir uma história?"



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