Flávio Carneiro
Comentários
Defesa do ensaio
Denilson Lopes
Correio Brasiliense. Brasília, 16.02.2001

Quando está em curso na universidade brasileira um processo geral de profissionalização, visível no crescente aparato de avaliações institucionais, de captação de recursos e adesão ao mercado, há certos saberes que se vêem cada vez mais à margem, por se colocar de forma problemática dentro do ritmo industrial.
Em meio ao surto quantitativo de números de artigos publicados e idas a congressos, a experiência do saber, ou melhor, o saber vivenciado parece ser o que menos interessa. São necessários métodos e metodologias, normas, fórmulas e slogans.
É neste panorama favorável a uma certa mediania e eficiência que dois livros trazem ar e vida. Porta-Retratos de Teresa Pires Vara, e Entre o Cristal e a Chama, de Flávio Carneiro, representam o melhor da tradição do pensamento brasileiro: o ensaio. Longe de desejos cientificizantes e disciplinares, porquês e justificativas, o que temos é a deriva do pensar com sua fecundidade maior.
Não são apenas livros bem-cuidados, bem escritos, que exigem do leitor um tempo para saborear. Além da importância do que se fala, a escritura e a leitura possuem um papel criador Entre o Cristal e a Chama oferece um diálogo com a estética da recepção. Realizamos um passeio por diferentes obras literárias por meio de minicríticas. Em Porta-Retratos, cartas, trechos de diário, sonhos se misturam a leituras de Marilene Felinto, Adélia Prado e do filme A Festa de Babette (Gabriel Axel), num sutil trajeto no feminino. Ao tornar indissociáveis sua biografia e seu trajeto intelectual, ao conjugar seus dois mestres, Antonio Candido e Roland Barthes, o que é afirmado, longe do mero narcisismo, é a visceralidade do ato de conhecimento.
Estes novos livros trazem um gesto maior de ficcionalidade à tradição conciliadora e elegante do ensaio. Nos dois livros, resta o prazer do texto. Por isso talvez o incômodo? Seria sempre regressivo o discurso da beleza em meio a tantos temas que polarizam mentes e debates como multiculturalismo, globalização, virtualidade?
Entre o Cristal e a Chama nos coloca na indissociabilidade entre leitura e escrita ao fazer nascer o escritor do leitor. O escrever se traduz numa materialidade, a partir do exercício cotidiano da leitura, do corpo de quem escreve. Ler é uma atitude diante do mundo. Talvez a sombra de Borges seja demasiada no final, quando a personagem sem nome do Leitor ensaia sem resultado sair dos labirintos textuais, evocando a dimensão solitária, trágica e moderna, da escrita e da leitura. No entanto, há uma brecha frágil, que talvez se realize para além do livro, do fascínio do texto para a experiência do leitor, da crítica para a narrativa.
De forma mais explícita, Teresa Vara dá este salto ao se nomear, falar de sua experiência de leitor não como figura mas na sua singularidade. Não se trata de volta ao texto, mas um alargamento da literatura e da crítica como fonte de criação. ''Ler o que não se sabe, ler o que não existe'', se aventura Teresa Vara. Sem temer os riscos, seu corpo se configura no texto, para resgatar ''a experiência do leitor no ato crítico da leitura''.
O leitor, digo, eu me pego enredado na escritura de Teresa e Flávio, já é de todo impossível evitar a intimidade. ''Você sabia por experiência própria como eu gostava de viver as histórias que inventava, era isso que complicava, eu nunca sabia ao certo qual o limite.''
Eu me apaixonara perdidamente. Não pude evitar. Não posso evitar. ''Por que sempre volto ao começo de tudo, aqui neste lugar reduto de beleza, de afeto e de poesia?'' A pergunta de Teresa Vara fica sem resposta, mas o caminho se faz de toda forma.



Outros Comentários



Voltar