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Da Matriz ao Beco e Depois
Maria Fernanda de Souza Oliveira
www.klickescritores.com.br, dezembro de 2000
Um romance policial ou um livro de contos? Ou, ainda, a construção "policial" da narrativa? A resposta depende do gosto do leitor: ingênuo, arguto, teórico, obsessivo.
Da matriz ao beco e depois, de Flávio Carneiro, se organiza da seguinte maneira: dez contos que podem ser lidos em separado, cujas histórias se articulam perfeitamente, seja porque formam seja porque, não formando, engendram em nós a idéia de um todo. São passadas no Rio de Janeiro, entre o centro da cidade e a Praça da Bandeira, mais precisamente entre uma imaginária Rua da Matriz e o beco de mesmo nome.
Nessa localidade literária que dá nome ao livro, moram ou trabalham quase todos os personagens dos contos: escritores, como o famoso Nelson Filho (autor da epígrafe que abre o livro) e o anônimo que o inventou, ou o profissional que vive de escrever histórias segundo o gosto do cliente e recebe uma estranha encomenda: escrever seu próprio epitáfio; suicidas, como D. Alice, encantoada dentro do apartamento por uma avalanche de cartões-postais de um ex-amante abandonado, na verdade falsos cartões, confeccionados cuidadosamente pelo porteiro do edifício; exóticos pensadores, como Libério, que se dedica à pesquisa, inclassificável no rol das ciências, sobre o "ponto vital" da pedra, pesquisa que o obriga a matar sua esposa, Cássia, a qual, aliás, costuma trancá-lo em casa antes de sair para o trabalho; detetives, como Mandrake e Fonseca, criações do escritor Nelson Filho, que assina o conto "Tardes de verão".
O livro de Flávio Carneiro sugere ao leitor uma espécie de fechamento - ao menos esta palavra se aproxima da sensação que toma o leitor diante do texto - que é, na verdade, uma grande armadilha. Como quer que comecemos a recapitular os seus passos, por onde quer que involuntariamente nos insinuemos para reconstruir cada cena, no afã de ter de todo o espetáculo uma visão global, aí somos vencidos duplamente. Não conseguindo a tal panorâmica, o que sucede é que somos, pelo menos nos instantes posteriores à leitura, incapazes de nos distanciar do livro.
Ao invés da pretendida distância e da visão de conjunto, o livro só nos permite voltar a ele, retomando suas pegadas parágrafo a parágrafo, no esforço de buscar uma unidade que nos parece óbvia e que, no entanto, foge a cada investida. A este sofrimento chamamos prazer, e onde texto ri de nós, no jogo de gato e rato, nós o declaramos genial.
Com tantas elucubrações possíveis, pode parecer que o livro não passa de um quebra-cabeças hermético e enfadonho. Muito ao contrário, além de extremamente bem-humorados, os contos são montados a partir de uma combinação de cenas comuns e cenas insólitas - entre outras, a da jovem cantora que um belo dia aparece muda, sem voz, enquanto uma pequenina clave de sol vai se desenhando misteriosamente na palma da sua mão, para desespero do marido, um escritor que não entende -, cujo resultado final é uma narrativa envolvente, que certamente há de agradar tanto ao leitor comum como ao leitor culto.
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