A multiplicidade de Flávio Carneiro
Beatriz Resende
Texto inédito, escrito especialmente para este site. Rio de Janeiro: 2014.
A primeira característica que poderíamos apontar na obra já consolidada do escritor Flávio Carneiro é a multiplicidade: de formatos, de público alvo, de tom. Unidos pela alta qualidade, pelo cuidadoso trato com linguagem e por uma sensibilidade que não teme se evidenciar, os textos de Flávio dirigem-se a vários leitores possíveis em possibilidades diversas. Mais ainda, o autor não teme o suporte escolhido ou o tema, o que faz com que não hesite em ser também cronista esportivo de jornal em Curitiba - o Rascunho - ou dedique-se a roteiros cinematográficos para longa e curta metragem.
Nascido em 1962, em Goiânia, capital do Estado de Goiás, no centro do Brasil, mudou-se para o Rio de Janeiro nos anos 1980. No Rio, é Professor Universitário, orientando teses e dissertações não só na área dos estudos teóricos da literatura mas em experiências inovadoras de criação literária; atua como crítico com ensaios e resenhas e é escritor, com uma produção que vai do romance à crônica.
Na vida literária, a primeira convivência difícil, muitas vezes impossível mesmo, das diversas formas de intervenção, parece-me ser a do escritor com o professor. Existem entre nós outros exemplos dessa espécie de vida dupla, dentre os quais está, certamente, Silviano Santiago, mestre fundamental de toda uma geração, ensaísta impecável e um de nossos mais importantes ficcionistas. São, porém, casos raros. É como se o professor tentasse sempre imiscuir-se nos voos do romancista, dando ao texto um tom didático, explicativo, contido ou pedante.
Em Flávio Carneiro dá-se o contrário. O ensaísta sofisticado e o professor competente desaparecem quando cria ficção. Nenhum traço de pedantismo, nenhuma artificialidade que leve para o texto as últimas teorias, tentação forte demais para quem assume as duas dicções.
O segundo desafio que a multiplicidade apresenta, na obra deste autor, é a eleição do público leitor a que dedica seus textos. Flávio começa na prosa de ficção com a publicação de Acorda, Rita!, narrativa infanto-juvenil, de 1986. A prosa voltada para o público infanto-juvenil se tornará constante. Na verdade, a classificação infanto-juvenil é por vezes insuficiente, limitada. Depois da segunda novela do gênero, A casa dos relógios, de 1999; de Lalande, de 2000, e de O livro de Marco, de 2003, o autor publica um livro que vai atingir um amplo público jovem: Prezado Ronaldo, de 2006. Em 2007 recebe o prestigioso prêmio "Barco a vapor" para Literatura Infanto-Juvenil, que lhe garantiu a publicação do tocante A distância das coisas, em 2008. O personagem Pedro, que conduz a narrativa, tem 14 anos e com ele irá se identificar qualquer leitor que veja a si mesmo como um jovem naquela fase da vida em que: "Na verdade você vive cercado de dúvidas por todos os lados".
Este desvio pela produção infanto-juvenil do nosso autor pretendeu retomar a ideia da diversidade em convívio de que falamos. Há em Flávio Carneiro um desejo permanente de envolver seu leitor, uma preocupação em atraí-lo para dentro do narrado. Isso, que pode parecer óbvio ao se falar de literatura, na verdade está longe disso. Há toda uma vertente contemporânea que constrói a escrita como incômodo, estranhamento, atrito, em possibilidade mais do que legítima, merecendo destaque, mas que não deve ser considerada como única vertente da produção literária de importância hoje.
Como teórico e crítico literário, Flávio Carneiro publica em 2001 Entre o cristal e a chama: ensaios sobre o leitor e esse deslocamento aparente do objeto de sua reflexão - do texto para o leitor - aponta mais uma vez para a importância do escritor, em todos os tempos e todas as literaturas, unindo escrita e leitura quase num ato único.
Sobre o livro escreveu o professor e crítico Renato Cordeiro Gomes:
Deste modo, entre o cristal e a chama, entre argumentação e análise, Flávio pavimenta uma terceira via, para além dos caminhos que se bifurcam; sabe que as interpretações podem cristalizar-se, entretanto sabe também que é possível construir novas leituras que reativem as forças significativas dos textos, que não se esgotam. Revela, assim, que cada leitura é um caso, um exercício, um jogo: um ensaio, que é experimentação.1
No entanto é seu livro de crítica literária de 2005: No país do presente: ficção brasileira no início do século XXI que lhe garantirá um espaço pouco ocupado na critica literária. Organizando em um volume sua constante colaboração como resenhista em suplementos literários, o crítico revela-se um dos pouco estudiosos atuais a se ocupar da literatura brasileira absolutamente contemporânea, a que faz a transição do século XX para o XXI, exibindo suas peculiaridades. Ocupar-se do contemporâneo, arriscar-se a comentar autores que estão apenas surgindo, é um desafio que se impõe ao teórico. É sempre mais seguro estudar obras e autores que já têm uma fortuna crítica desenhada, escritores já reconhecidos que, se reconhecidos pelo cânone, tornam o esforço crítico ainda menos arriscado. No entanto, é justamente o autor que surge, a experiência inédita - bem ou mal sucedida - que mais precisa da crítica, desde que esta exerça, como faz Flávio, o papel de mediador entre autor/editor e público, apresentando a obra ao leitor por vir, ajudando-o a conhecer melhor as estratégias de criação literárias produzidas. A urgência do presente, especialmente aguda em tempos onde as trocas comunicativas se fazem cada vez mais rápidas e imediatas, solicita, hoje, que o crítico se utilize das formas mais diretas de publicação, dentre elas jornais, periódicos diversos e mesmo blogs ou sites.
A obra de ensaios e resenhas a que nos referimos é uma das obras de reflexão crítica que melhor apresenta a literatura brasileira contemporânea, merecendo ser consultada por todos os pesquisadores que se dediquem a tal recorte de nossa literatura.
É o próprio autor quem identifica a importância do exercício da critica jornalística em entrevista dada ao Jornal do Brasil:
O espaço da crítica sempre foi reduzido. O espaço da literatura, aliás, sempre foi pequeno, ainda que, há cem anos atrás, ser escritor tivesse mais status do que tem hoje. De todo modo, acredito que o crítico possa interferir no processo, por exemplo, se aprimorando no exercício da resenha, que atinge um número razoável de leitores. Acho o formato da resenha interessantíssimo e discordo radicalmente dos que a consideram um modo superficial de crítica. Se bem feita, com consistência, com seriedade, a resenha é uma forma de apresentação crítica do livro, um elo entre autor e leitor. Um das principais funções do crítico é apresentar a obra ao leitor de forma clara, precisa, buscando sempre um olhar original, um ponto-de-vista diferenciado, e também contextualizando a obra, dizendo que espaço ocupa no campo mais amplo da tradição e no panorama atual. Tudo isso ele pode conseguir na resenha.2
O primeiro livro de "ficção adulta", se é que distinções como esta existem, é o livro de contos Da matriz ao beco e depois. Os dez contos que formam o volume articulam-se sempre de algum modo. A cidade é uma presença forte, pela menção a ruas com seus cantos em claro/escuro, com a dureza dos chãos da cidade, com as ameaças ou espaços de fuga que possam representar. As referências literárias de formação do autor aparecem nas narrativas pelo tom, por vezes a referências quase explícitas à maneira de Rubem Fonseca escrever - e seria quase impossível que um escritor de sua geração, ao transitar por espaços da cidade, não contivesse em sua obra alguma coisa dos grandes momentos de Fonseca - ou ainda em referências a autores da literatura do fantástico ou do chamado real-maravilhoso, particularmente em sua vertente latino-americana.
O campeonato é o primeiro romance, de 2002, com uma escrita completamente diferente dos contos, mas com a permanência de uma opção pelo desprezo à lógica tradicional, cartesiana, presa ao realismo. Este romance é uma daquelas obras que nos leva de volta à constatação de que a literatura tem múltiplas, infinitas, funções, entre elas a de divertir.
Como disse quando tive oportunidade de escrever, também em jornal, sobre o romance de meu colega, o autor revela, mais uma vez, nesta obra, que tem dois gurus: o romancista, roteirista americano pós-moderno, Paul Auster, frequentemente auto-referente como em Cidade de vidro, e, ainda, Rubem Fonseca, autor do conto "O campeonato", publicado em Feliz ano novo. Toda a obra é atravessada pela literatura do fingimento assumido de um Jorge Luis Borges até a prática da metaliteratura. Nada é gratuito em quem, como seu personagem, é um maníaco pela leitura. Por intermédio do personagem-narrador, Flávio Carneiro se mostra, antes de mais nada, como o grande e privilegiado leitor que é. Este é, também, o primeiro crime da narrativa: o crime de ler obsessivamente, que custa ao personagem André seu emprego, demitido da biblioteca onde trabalhava, por ter infringido a ordem de jamais ler no serviço. Estranha ordem a ser emitida por uma biblioteca.
Desse modo, a leitura de O campeonato pode ser feita tanto na clave da criação pós-moderna e seu curioso recurso a citações, como pela apreciação da ironia com que, desde Cervantes e Flaubert, os autores mais sofisticados tratam os perigos que a literatura às vezes oferece.
A originalidade da obra reside justamente no aspecto de jogo que oferece ao leitor, conduzido pelo jovem André, em estratégia narrativa com possibilidades raras de despertar o interesse de jovens leitores, batalha dura a que poucos têm, infelizmente, se dedicado num país onde são muitos os bons autores e poucos, bem poucos, os leitores. As informações vão-se acumulando numa ordenação curiosa porque originada da própria leitura. Haverá sempre alguma informação de que o leitor não dispõe ou que está evidente demais para ser verdade.
Montalbán - outro personagem - é quem chama a atenção para o fato de que numa sociedade carregada de tensões, de relação entre política e crime, de dupla moral, inventar e reinventar a realidade através de uma literatura do crime não é, forçosamente, afastar-se do rigor literário. O jogo que Flávio Carneiro propõe lida com todos estes ingredientes.
A juventude do narrador André, que passa por mulheres mais sedutoras que a Mulher-Gato e acaba nos braços de uma garota meio hippie de 15 anos e olhos azuis, que torna o detetive formado por correspondência um condutor de jogos, é especialmente propícia a seduzir um jovem leitor ou qualquer leitor que consiga se manter jovem pela literatura.
Em 2006 Flávio Carneiro lança o romance A confissão, onde retoma com radicalidade a ruptura com o realismo que acontecera em vários contos de Da matriz ao beco e depois. O romance parte de uma situação insólita, um rapaz de origem pobre, que no início da história quase morre desabrigado e faminto, mas no desenrolar dos acontecimentos enriqueceu por mecanismos do fantástico, sequestrou uma mulher rica e diante da vítima imobilizada conta sua história de vida. O romance é todo construído em discurso direto, monológico. Nenhum momento de diálogo, nenhuma outra voz que não a do sequestrador, o que já dá à narrativa um formato original. À primeira vista, o leitor terá a impressão de estar diante de mais uma narrativa sobre a violência urbana contemporânea, do conflito entre a privação (do narrador) e a abundância (da personagem a quem se dirige). No entanto a narrativa irá levando o leitor, passo a passo, por um caminho bem diverso.
O jovem passara da miséria à riqueza na prática involuntária de uma espécie de vampirismo, apropriando-se de tudo de bom, positivo ou lucrativo que cada uma das mulheres com quem se relaciona possui, até apropriar-se da própria vida delas. Essa relação alegórica, completamente afastada da lógica da realidade cotidiana, confere ao protagonista que se confessa um poder impossível, exacerbado, só terá um limite - e este limite chega - o medo.
Percebemos, ao tratar deste romance, que falamos de uma escritura limpa, precisa, sem enfeites desnecessários, e aí está sua verdadeira sofisticação, mas também que, mais uma vez, voltamos ao tema da violência, de relações homem-mulher atravessadas por ideias de controle, apropriação e medo.
De uma maneira ou de outra, adotando uma ou outra forma de discurso, é sobre o enigma da constituição da literatura, de sua fruição, dos prazeres de efeitos encantatórios que exerce sobre o leitor, mesmo quando é terrível, contendo nela toda a dor do mundo, que Flávio Carneiro está sempre falando.
1 GOMES, Renato Cordeiro. Revista Alceu, nº 3. Rio de Janeiro: PUC, segundo semestre de 2001
2 Entrevista concedida a Cláudia Nina - Jornal do Brasil, 27.06.2005.
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