Flávio Carneiro
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A inquietação em vocábulos adequados
Miriam Gárate
Revista Saber, nº 4. São Paulo: Edusp/Fapesp, setembro de 2001

Ente o cristal e a chama no subtítulo o que numa primeira instância o título de capa, deliberadamente ou não, vela aos olhos de quem se depara com o texto: o objeto de reflexão delimitado por Carneiro (a leitura); a estratégia escolhida para abordá-lo (o ensaio praticado em torno a um corpus de obras ficcionais que tematizam esse objeto em sua diversidade). Mas antes de percorrer os Ensaios sobre o leitor invocados no subtítulo somos convidados a trilhar um longo prefácio que objetiva munir-nos de uma bússola teórica. Marcando o norte, a idéia de um vínculo indissolúvel entre leitura e escrita, idéia que Carneiro se propõe historiar sumariamente no contexto das teorias literárias contemporâneas, bem como explorar quanto a suas consequências e eventuais limites.
O (não)Breve passeio pelos bosques da leitura que dá título ao prefácio começa destacando o privilégio concedido durante longo tempo à relação autor/texto em detrimento da instância receptora - traço comum à estilística, ao formalismo russo, ao new criticism e ao estruturalismo. Partindo desse diagnóstico Carneiro revisa o processo de reabilitação do polo receptor empreendido por Hans Robert Jauss e por Umberto Eco, duas referências fortes embora não exclusivas do trabalho. "Maquinária preguiçosa" que solicita a colaboração do destinatário (Lector in Fábula) o texto vê-se integrado numa relação voltada, graças a essa mudança de orientação, em direção àquele que o recebe. Desse ponto de vista, a associação entre leitura e poiesis postulada Jauss em finais dos anos 80 representa um passo a mais no sentido de se conceber ao leitor enquanto agente co-criador da obra.
Condição sine qua non dessa mudança de rumo é a deflação da noção de autoria, fenômeno que pode ser considerado como parte integrante de um processo mais vasto (o da "dissolução do sujeito" em benefício das "estruturas", teorizado por Levy Strauss, Althuser, Barthes, Derrida) e que o crítico examina de perto com o auxílio das teses foucaultianas. O deslocamento do autor da posição de dono (ilusório) do discurso à de elemento e função do mesmo (função institucional e variável conforme a classe de textos, a época e a cultura) permite aventar a hipótese do parcial desaparecimento do autor e da emergência de "brancos" ou de "espaços vazios" a serem preenchidos por outra entidade, que Carneiro sugere denominar função leitor.
Apesar das precauções tomadas no sentido de evitar uma mera troca de papéis (visto que "o esfacelamento do sujeito implica também o do leitor") Carneiro vê-se obrigado retomar, nesse ponto, a pergunta pelos limites da autonomia da função leitor e de suas interpretações. Deliberadamente a expressão evoca, mais uma vez, Umberto Eco. De fato, Limites da interpretação e Interpretação e Superinterpretação fornecem a Carneiro as categorias idôneas para pôr freios à inventividade potencialmente ilimitada e aberrante do leitor. É, assim, no jogo entre a intentio autoris (difícil de apreender) e a intentio lectoris (também fugidia) que desponta essa terceira entidade chamada intentio operis, instância reguladora que propicia um jogo libre e criativo, mas regrado, entre leitor e texto.
Ao ser referir aos hypomnemata citados por Foucault em A escrita de si, Carneiro comenta que esses cadernos de anotações podiam transformar-se eventualmente em "livros de vida" e acrescenta: "Não se tratava de simples auxiliares da memória mas de um exercício, um ensaio cotidiano visando ao auto-conhecimento pela observação e reflexão colocadas no papel, não como um tratado mas como recortes, como exercício regular de uma escrita fragmentada". Sem configurar um "tratado", o longo Prefácio introdutório de O cristal e a chama visa definir com rigor conceitual instrumentos que possibilitem aproveitar melhor o passeio pela escrita fragmentada (porém regular, sistemática, feita de idas e voltas, de obsessivos retornos desde de ângulos complementares) que constitui a segunda parte do livro - não por acaso, intitulada Caderno de leitura. À maneira dos hypomnemata em que os antigos construíam, aos poucos, uma "história pessoal" feita a partir da "história dos outros", Carneiro nos propõe, através dos trinta ensaios curtos que integram a segunda parte, um trajeto pessoal (uma memória de suas leituras) montado (a montagem como procedimento é outra referência constante do livro) com uma galeria múltipla e vária de narrativas.
O ponto de interseção de um corpus que congrega obras do século XIX e do XX, das literaturas brasileira, hispano-americana, norte-americana e inglesa, é dado pela omnipresença da leitura (de relatos impressos e orais, de palavras "soltas", de imagens, de rostos, de partes do corpo, de ruas, de fragmentos de tecido, etc.) como elemento disparador e condutor da trama, e pela omnipresença do(s) leitor(es) como personagem principal da mesma.
A protagonista de Felicidade clandestina, de Clarice Lispector; Edgar Allan Poe, seus enigmas e sua tipologia de intérpretes (do Dupin e os policiais de Os crimes da Rua Morgue ao narrador de O homem da multidão); o personagem-leitor-vítima de Continuidade dos parques, de Julio Cortázar, desenham, no capítulo inicial dessa segunda parte, um primeiro mapa da leitura vista sucessivamente como jogo, eros, luta e disputa, risco, sedução, espera, invenção.
Como numa composição musical, o mesmo tema é retomado com variações, graças às variações que comporta a introdução de um novo texto. Assim, o motivo da paixão (erótica e de saber) ressurge nos ensaios sobre Aqueles cães malditos de Arquelau, de Pessoti, Uns braços, de Machado de Assis ou A vidente, do mesmo autor. O olhar voltado para a decifração dos signos da cidade, introduzido por meio da metrópole londrina de Poe, é revisitado através de A arte de andar nas ruas de Rio de Janeiro, de Fonseca, Cidade de vidro, de Auster, O quieto animal da esquina, de Noll. O narrador deste último romance, por sua vez, serve de contraponto aos leitores decifradores de Poe, ao leitor "modificado pela passagem do tempo", tematizado graças ao conto de Cortázar e, é claro, ao Pierre Menard de Jorge Luis Borges. Da mesma forma, as relações entre memória//leitura/narrativa/escrita são inquiridas em textos tão distintos como Colcha de retalhos, de Lobato, Funes o memorioso, de Borges, Farenheit 451, de Bradbury.
A certa altura - no fim do quinto capítulo e no capítulo seis, mais precisamente nos ensaios intitulados O leitor e o nome- parece-me que é testada, em ato, a hipótese do vínculo indissolúvel entre leitura/escrita, interpretação/invenção. Se, como sustenta o imaginário leitor da última página do livro (depois de reler o capítulo IV de Alice no país das maravilhas com o intuito de decifrar o enigma da epígrafe estampada em As ruínas circulares de Borges); se, "Descobrir é dar um nome... É encontrar a palavra certa, o nome justo para dar forma àquilo que até então era sensação pura, fantasma. Descobrir é como inventar um poema, uma história, nomear ... dar um nome", pode-se dizer que Flávio Carneiro encontrou as palavras certas para dar forma a suas inquietações. Soube dar um nome (seu nome) a Entre o cristal e a chama.



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