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A ficção policial de Flávio Carneiro
Gismair Martins Teixeira
Jornal O Popular, Caderno Magazine. Goiânia, 12.01.2010
Em A Linguagem Literária, o crítico Domício Proença Filho afirma que não há uma perspectiva correspondente à da gramática normativa em lingüística para o universo da criação literária. Sobre o ato criativo nesta arte, diz ele textualmente: "Seu único espaço de criação é a liberdade". Lida de maneira apressada, a afirmativa pode até parecer banal. Mas quando se para para pensar nos incontáveis exemplos que podem ser pinçados no manancial infinito desta categoria artística, a assertiva de Proença Filho passa a fazer muito sentido. De fato, para a liberdade de criação praticamente não há limites. O Campeonato, romance policial do crítico literário, escritor e roteirista de cinema Flávio Carneiro configura um bom exemplo dessa possibilidade inesgotável.
Originalmente lançada em 2002 pela Editora Objetiva, a obra está de cara e casa novas. Relançado no apagar das luzes de 2009 pela Editora Rocco, O Campeonato passou por minuciosa revisão e alguns ajustes pelo autor, que nasceu em Goiânia e migrou para o Rio de Janeiro no início dos anos 1980. A propósito, O Campeonato é a primeira obra da chamada Trilogia do Rio de Janeiro, seguida por A Confissão, livro conhecido dos estudantes goianos por conta do último vestibular da UFG, e que se completará em 2010 com o lançamento previsto de A Ilha. As três obras têm as suas tramas ambientadas na capital fluminense, que Flávio Carneiro demonstra conhecer bem. Daí, óbvio, a designação da trilogia.
A narrativa de O Campeonato apresenta André, um jovem e voraz leitor de romances policiais, que, devido à sua compulsão por leitura, não consegue parar em empregos, que geralmente lhe são arranjados por seu irmão mais velho, Augusto, dublê de pai superprotetor e profissional com uma carreira vitoriosa. No intervalo entre uma sessão e outra de terapia para o seu "vício" de ler, André acaba fazendo um curso de detetive por correspondência. Sem maiores pretensões, coloca um anúncio no jornal oferecendo seus serviços. Assessorado por um amigo de infância, que o leitor conhecerá pelo apelido de Gordo, André é contratado para o seu primeiro caso por um milionário cujo filho desapareceu há algum tempo. Empresário com muitos desafetos, Montenegro alega preferir a intuição de um jovem iniciante à parafernália técnica de detetives já veteranos. O leitor habituado à estrutura do romance policial colocará aí um grande ponto de interrogação, que ao final se justificará plenamente.
REFERÊNCIAS MÚLTIPLAS
O romance do escritor goiano é um repositório de referências que passeiam generosamente pelo intertexto, fruto das suas muitas leituras como crítico, professor e, sobretudo, apreciador de literatura. Nelas é que se assentam as bases em que Flávio Carneiro se apoia para dar asas à liberdade criativa a que se refere Proença Filho. A grande referência em O Campeonato é sem dúvida Rubem Fonseca, o papa do romance policial brasileiro, internacionalmente respeitado como um dos mestres do gênero. Carneiro se serve da estrutura do conto de Fonseca homônimo de seu romance, que integra o volume Feliz Ano Novo, publicado em 1975.
Neste conto, adolescentes são colocados para participar de um estranho campeonato de performance sexual, em que homens milionários e influentes fazem as suas apostas nos diversos casais disponíveis, numa macabra paródia turfística. Flávio Carneiro viu aí uma possibilidade de reelaboração textual numa perspectiva que evoca os postulados teóricos da pesquisadora canadense Linda Hutcheon em Uma Teoria da Paródia.
Em suas investigações noviças, André e Gordo descobrem, com o auxílio de algumas outras personagens, que o sumiço de Pedro, filho de Montenegro, está diretamente relacionado a um sinistro campeonato que reproduz o mais fielmente possível a atmosfera mórbida do conto fonsequiano. Seus promotores, óbvio, são fãs de carteirinha do autor carioca.
Rubem Fonseca é um grande apreciador de vinhos - embora não possa mais tomá-los -, mulheres e futebol. Em O Campeonato estes índices biográficos do escritor aparecem disseminados no hábito de algumas personagens. À semelhança do mestre, que abusa dos palavrões em sua vasta produção, Carneiro compõe o seu aprendiz de detetive com o maneirismo de alguns xingamentos. Faz sentido. É comum o leitor fanático apropriar-se de algumas características de seus ídolos. Com André não é diferente. É a má influência a que se referia Platão para justificar a expulsão dos poetas de sua República. Gordo, o simpático ajudante de André, é vascaíno como Rubem Fonseca. André é botafoguense - Flávio Carneiro também seria? Tinha de sobrar para o Flamengo, obviamente. E sobrou. Numa referência rodrigueana, o atual campeão brasileiro é representado por um dos canalhas da obra, que chegou mesmo a presidi-lo em O Campeonato.
Em sua efabulação, Flávio Carneiro dá outra tacada de mestre no quesito criatividade à Proença Filho. Seu protagonista, à página 322, relata um sonho esquisito. Nele, um homem seqüestrava uma mulher. Diante dela, amarrada em uma cadeira, contava uma longa história. Para André é só um incompreensível sonho. Para o leitor atento, não. Trata-se da gênese de A Confissão, obra que nos apresenta a um estranho vampiro sexual, que relatará a sua curiosa história numa formatação estilística que dessa vez fará uma homenagem simultânea a Guimarães Rosa e ao português José Saramago. Já se disse por aí que o romance policial é um gênero popular que cada vez mais tem sido enriquecido por hábeis ficcionistas. É o caso de O Campeonato e de Flávio de Carneiro
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