A escrita como busca na fronteira entre ensaio e ficção
Luciano Trigo
O Globo. Rio de Janeiro, 09.06.2001
Em Entre o cristal e a chama, Flávio Carneiro mapeia e analisa uma seleção de "personagens-leitores", criados por um heterogêneo leque de ficcionistas, que vai de Machado de Assis a Clarice Lispector e Rubem Fonseca, de Edgar Allan Poe e Italo Calvino e Paul Auster. Ele próprio um ficcionista - é autor de Da matriz ao beco e depois - Flávio alia ao rigor acadêmico (trata-se, originalmente, de uma tese de doutorado) a inventividade e a inspiração poética em suas interpretações. O resultado é um ensaio que vale tanto pelo valor teórico de suas teses sobre a leitura quanto pelo puro prazer do texto.
"Escolhi textos de que eu tinha gostado de ler e que me davam margem para uma reescritura, textos 'escrevíveis', como diria Barthes. Não me guiei por nacionalidades, nem por períodos históricos, mas por um princípio fugidio: o prazer. É um critério pouco acadêmico, de fato, mas isso também fazia parte do jogo" - diz ele.
A leitura é entendida aqui em seu sentido mais abrangente: "Não se lêem apenas palavras", escreve Flávio. "Pode-se ler um romance ou um poema tanto quanto se pode ler no rosto de alguém um traço de dor, um sorriso, ou uma roupa, o céu, um jardim". Cita em seguida um personagem de Italo Calvino que se divide entre a leitura de um romance e a leitura do corpo de uma banhista, para concluir com Guimarães Rosa: "A vida também é para ser lida".
O livro é dividido em duas partes. Na primeira, "Breve passeio pelos bosques da leitura" (título que remete a Umberto Eco, que por sua vez remete a Calvino), o autor traça seus propósitos e estratégia: analisar o diálogo entre leitura e escrita, levando em conta os diferentes métodos de abordagem do tema, que se dividem em duas grandes correntes. Uma formalista, concentrada na letra do texto, e outra marxista, que enfatiza o papel das circunstâncias histórico-sociais. Na segunda parte, o "Caderno de leituras", Flávio analisa em 30 mini-ensaios diferentes personagens-leitores.
Uma leitura silenciosa, sem estardalhaço
"Na verdade, o prefácio entrou como uma espécie de concessão à Academia, já que os ensaios são bastante livres. O plano do livro é fazer um diálogo com As cidades invisíveis, do Calvino, já que eu também tentei desenhar os leitores invisíveis, aqueles que salvariam meu império, como as cidades invisíveis salvaram o de Kublai Khan. Quis inventar este ambicioso e ao mesmo tempo mínimo império: o das leituras construídas à sombra, em silêncio. Tentei uma escrita silenciosa, resultado de uma leitura silenciosa, sem estardalhaço. A ordem de aparição dos ensaios, embora pareça aleatória, segue um jogo de exatidão, espelhando o livro de Calvino, num jogo de análise combinatória."
Seja apontando o ingrediente erótico oculto no conto "Felicidade clandestina", de Clarice, seja decifrando o enigma cortazariano de "Continuidade dos parques", Flávio aposta num papel ativo do leitor. Mas não existiriam limites para a autonomia do leitor? Um mínimo denominador comum que daria limites à sua liberdade na interpretação dos textos e ao seu papel de co-criador? Flávio admite que sim:
"Toda leitura é limitada pelo outro, pelo texto. O mais importante não é o leitor ter toda a liberdade do mundo, mas dar-se conta de que as possibilidades de leitura beiram o infinito. Só assim é possível ler, e escrever."
Ao escrever Entre o cristal e a chama, ele tinha em mente um leitor que tivesse alguma bagagem de leitura: "Não gosto de escrever ensaios com sotaque acadêmico. Optei por uma escrita ensaística que tivesse algo de ficcional, algo do imponderável que ronda o texto de ficção."
Flávio promete que esta interferência entre gêneros voltará em seu próximo livro, mas em sentido inverso. Em O campeonato, que será lançado no ano que vem pela Objetiva, será a vez de o ensaio se intrometer no ficcional.
Um tema recorrente no "Caderno de leituras" é o da ilegibilidade da cidade. A tentativa de leitura da trama urbana como uma narrativa não é nova, mas Flávio sabe explorar novas facetas da idéia de que a realidade é um texto a ser permanentemente relido e reescrito - também presente no último romance de Rubens Figueiredo, Barco a seco.
"Há uma tendência da narrativa contemporânea nesse sentido. Tem a ver com o que Haroldo de Campos chama de tempos pós-utópicos, referindo-se a uma época em que não há mais projetos. Nicolau Sevcenko fala de uma arte que convive amigavelmente com o enigma, sem a pretensão de decifrá-lo. Vejo isso com muitos bons olhos, não sou nada apocalíptico. Vivemos um momento especial, fértil, em que a prepotência de lidar com certezas, a realidade como texto pronto e acabado cede lugar ao jogo das aparências, das verdades possíveis. É a realidade borgeana, texto a ser lido e escrito pelo leitor."
À consideração de que no fundo toda leitura é imperfeita e parcial, ou seja, uma experiência pessoal e intransferível - e de que toda teoria da leitura é um exercício de especular sobre esta imperfeição - Flávio retruca:
"Teorizar, escrever ensaios, passa pelo reconhecimento do imperfeito. É o que chamo de encenar o 'inacabado' no espaço reservado para o 'acabado', trazer para o palco da teoria o que há de imperfeito na ficção, sabendo que o imperfeito, no caso, é um sinal de mais, não de menos."
É possível argumentar que, como o conceito de leitura usado no livro é muito amplo, ele é aplicável a praticamente qualquer personagem da literatura. Já que tudo se lê, todo e qualquer personagem é um personagem-leitor. Pergunto se Flávio não teria usado uma ferramenta abrangente demais, como uma peneira com buracos muito grandes.
"Esse fantasma me acompanhou por todo o processo de pesquisa e de escrita do livro. Afinal, o que é ler? Quis estender o conceito de leitura para além do contato com o texto escrito, mas sei que isso implicou uma abertura talvez demasiada. Mas percebi que tentar resolver a questão me impossibilitaria de escrever o livro que eu desejava, e precisava. Ficar restrito a personagens-leitores de texto escrito ou, então, me embrenhar na tentativa de encontrar um conceito mais preciso de leitura me levaria a uma outra pesquisa, eminentemente teórica, distante daquilo que eu pretendia fazer. O mais importante é a encenação de uma escrita tateante, que se ensaia buscando uma forma que jamais virá. Quero dizer: a tentativa de construir uma escrita que se assume como busca."
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