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A confissão de um vampiro
Luiz Ruffato.
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25.11.2006.
O ensaísta, roteirista e escritor Flávio Carneiro acaba de lançar um romance que, de certa maneira, caminha na contramão da atual opção da literatura brasileira pelo hype-realismo (prefiro inventar esse termo para contrapô-lo ao batido neonaturalismo, que acredito anacrônico para descrever o nosso atual estado de coisas). Ao desleixo da linguagem - um rebaixamento perigoso, por populista - Carneiro prefere um texto limpo, mas complexo. À imitar a realidade, escolhe correr riscos e construir uma metáfora. Enriquece, assim, o panorama da ficção contemporânea e alarga o horizonte dos leitores ávidos em tentar compreender a nossa sociedade.
Aparentemente, A confissão é um romance que se filia à longa tradição do fantástico - ou, se quisermos, à já consolidada tradição das histórias de terror. Os elementos mais evidentes encontram-se aqui, como o insólito das situações, a relativização dos conceitos de tempo e espaço, o inapreensível percebido como natural. Mas, nas mãos de alguém que domina o ofício, o que é aparente pode não ser o essencial. E nisso consiste a arte: mais que o autor, quem lhe dá vida é o leitor, que carrega para as páginas do livro as suas próprias experiências e expectativas, reformulando as possíveis intenções iniciais do escritor.
Uma das leituras possíveis de A confissão seria a de um romance que busca, de maneira bastante feliz, entender os impasses da violência numa sociedade que já não tem mais valores sólidos onde se assentar. O narrador anônimo, mais paciente que agente de sua vida, seqüestra uma mulher, também anônima, e arrasta-a para uma casa isolada, onde a obriga a ouvir sua história. O motivo pelo qual age desta maneira, só no final o leitor, assim como a seqüestrada, entenderá.
Aos dezenove anos, o narrador, desempregado e sem profissão definida, perambula pelas ruas do Rio de Janeiro, vivendo com o pouco que arrecada na venda de livros roubados em bibliotecas e livrarias. Apenas duas coisas o fascinam: a leitura de cardápios de restaurantes chiques e a nuca das mulheres. Sem expectativas, leva sua vida medíocre, até que um dia cruza num trem de metrô com Emma. Após algumas peripécias, Emma o convida para seu apartamento, de onde, depois de manterem uma relação sexual, o narrador foge, carregando quinhentos dólares, acossado por um homem que tentar arrombar a porta. No outro dia, pelos jornais, descobre que Emma havia morrido e que o homem à porta era seu noivo. O jovem sabe que, por algum motivo, ele foi o responsável por aquela morte. E, pior: percebe que, de alguma maneira, ele incorporou às suas as memórias de Emma.
Mais tarde, encontrará Agnes, uma médica que dá a chave para entender o ocorrido. Ele descobre que é um vampiro - não desses com dentes salientes e capa preta, mas alguém que tem o poder de sugar a vida de outra pessoa. Então, o jovem passa a exercer esse seu poder para viver sem trabalhar - pois apossa-se dos bens das vítimas - e para incorporar novos conhecimentos. Viaja pelo mundo, sempre insaciável, até que num acesso de saudosismo, volta ao Rio de Janeiro em busca daquele que foi um dia. Conhece, então, Inês e tomado de paixão verdadeira por ela, descobre entretanto que não pode consumar esse amor, porque consumá-lo seria destruí-la. Diante desse impasse, só resta uma solução: incorporar à sua memória algo que julgara ter perdido para sempre. E isso quem pode restituir-lhe é a mulher a quem seqüestra.
Assim, utilizando de artifícios da literatura de entretenimento, Carneiro habilmente nos conduz a um universo de loucura e nonsense, retrato acabado da nossa época. Podemos, se quiser, ler esse relato como a confissão de um serial killer - suas vítimas são mulheres ricas que, possuem, então, tudo aquilo que ele nunca teve, beleza, dinheiro, sofisticação. E o vampirismo seria uma bela metáfora para os assassinatos. Mas, como todo assassino em série, ele sabe que mais dia menos dia será capturado. E para evitar que isso aconteça, ele tem que abrir mão de sua autoconfiança e readquirir o medo. E é aqui começa de verdade essa história.
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