Flávio Carneiro
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A bola da vez
Wilson Coêlho
Jornal A Gazeta. Vitória, 07.06.2014.

"Sou grato a futebol por um certo ensinamento moral:
o leal cumprimento das regras do jogo, que são
observadas por todos sem questionamento".
Albert Camus (escritor argelino, jogador e técnico de futebol)

O volume Passe de Letra - Futebol & literatura, de Flávio Carneiro, editado pela Rocco em 2009, é uma coletânea de crônicas que foram publicadas nos anos 2007 e 2008, na coluna homônima do jornal Rascunho, de Curitiba.
Para muitos leitores e críticos, a crônica literária não passa de uma narração curta, escrita apenas para ser veiculada na imprensa, tanto nas páginas de uma revista quanto nas páginas de um jornal. Considerando, ainda, a sua finalidade utilitária e por ser organizada a partir de determinada atualidade na sua relação com o tempo (cronos), parece ser uma notícia datada e com tendências a ter vida curta, ou seja, ser esquecida em poucos dias ou semanas.
Conforme Luís Fernando Veríssimo, que assinou o prefácio do livro, "A paixão pelo futebol não precisa ser explicada - para quem tem paixão pelo futebol. Para quem não tem, precisa. Não só explicada como defendida". Um pouco amparado na crônica intitulada Futebol & Literatura, na qual Flávio Carneiro tece analogias entre um e outro para defender a ideia de que tanto o futebol quanto a literatura, na condição de jogos, estão enquadrados em regras que determinam a linguagem, limites e regras, talvez, possamos até acreditar numa possibilidade de "explicação".
Na leitura que faço da obra, parece que o mais importante não se resume numa intenção de que o futebol seja explicado ou defendido, considerando que - apesar do domínio das regras do jogo - há também uma espécie de jogo com as próprias regras, onde ao mesmo tempo em que as regras definem o jogo, o jogo também estabelece regras, na medida em que o futebol extrapola os limites do campo. Nos momentos em que o futebol está nas ruas, nas praças e num lugar mais inusitado que é a cabeça das pessoas aficionadas por este esporte, onde os lances da bola fundem e se confundem como signos de uma realidade em que todos são jogadores, técnicos e espectadores/torcedores ao mesmo tempo.
Nessa relação entre o futebol e a literatura, o autor faz com que cada seja uma espécie de pelada e, como na crônica Pelada em Berlim, não significa um jogo sem importância, mas um exercício de despojamento e de liberdade ou, como dizem os alemães, um Amateurkicker, que - conforme o autor - significa "chutador (de bola) amador".
Apesar do declarado amor de Flávio Carneiro pelo futebol, na maioria de suas crônicas, este esporte parece simplesmente servir de pretexto para muitas outras coisas que o autor quer dizer do mundo a partir da literatura. E é justamente através do futebol que o autor enfatiza questões do cotidiano que por mais triviais pareçam ser, passam a ocupar um lugar de suma importância para que possamos entender que nem só de protagonistas sobrevivem as histórias.
Apesar da suposta temporalidade da crônica e que, diga-se de passagem, cada uma se basta a si mesma, o autor contraria estas suposições. A forma como estas crônicas estão organizadas, nos dá a impressão de uma ordem cronológica onde elas se completam e se complementam como uma espécie de unidade, no sentido da existência de um personagem que perpassa todas as histórias, não importando as fronteiras entre a memória e a ficção. A crônica Selefama Esporte Clube, onde tudo começou, registra uma ação social colocando-nos diante da realidade de menores abandonados. Uma reflexão da condição de excluídos frente o sonho de se incluir socialmente, um tipo de pertencimento por participar de um grupo social, time de futebol aceito num gramado oficial e aplaudido pelo público. Selefama é o resumo de uma realidade. Sele, como a ideia de seleção e, Fama, o nome do bairro, como a sigla de Fundação Abrigo ao Menor Abandonado. As crônicas trazem elementos de preservação da memória, tanto no sentido material quanto imaterial.
Há momentos ricos de interpretações da subjetividade, inclusive, como explicitamente está discutido em O narrador. Há um constante ir e vir nos conceitos que são um verdadeiro passe de letra, onde a bola/palavra é atirada para criar movimentos, desde o prazer dos dribles até a possibilidade dos gols.
Enfim, confesso que não gosto de futebol e que nunca assisti a nenhuma partida, nem da seleção brasileira, mas me rendo porque ao ler o Passe de Letra, o autor me fez entrar em campo. Resumindo, a obra é a bola da vez, tanto para quem gosta de futebol quanto para quem gosta de literatura.



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