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A arte de bater um escanteio
Alvaro Costa e Silva
Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 25.04.2009
A páginas tantas de Passe de letra, Flávio Carneiro chuta com efeito: "Um jogo é uma ficção fantástica. Talvez algum dia alguém venha a descobrir – a despeito de qualquer coerência histórica – que o futebol foi uma invenção de Hoffman, Maupassant, Calvino, Cortázar ou algum outro contador de histórias que giram em torno do sobrenatural". Pode ser. Que hay brujas, las hay. Mas deixemos a última palavra com o Sobrenatural de Almeida.
Ao menos, a tese de Carneiro é uma questão bem mais interessante que aquela outra, a qual volta e meia vem à cancha: o Brasil, "país do futebol", jamais conseguiu produzir um bom romance sobre o assunto. O que é uma bobagem. A Argentina, a Itália, a Alemanha, a França ou a Nigéria por acaso realizaram essa proeza? E O medo do goleiro diante do pênalti, novela do austríaco Peter Handke, não é bem sobre futebol.
Aqui, como lá fora, o que há são bons contos, alguns excelentes, em torno do tema – aí, sim, pode existir uma discussão além do papo de bar depois da pelada: por que o futebol se dá melhor na narrativa curta? Pegue-se a antologia 22 contistas em campo, organizada por Flávio Moreira da Costa, que os exemplos abundam: "Já podeis da pátria filhos", de João Ubaldo Ribeiro; "Abril, no Rio, em 1970", de Rubem Fonseca; "Na boca do túnel", de Sérgio Sant’Anna; "Dia dos mortos", de Sérgio Faraco; "Juan Polti, half-back", do uruguaio Horacio Quiroga. E bem poderiam entrar mais dois: "Buda", do chileno Roberto Bolaño, e "No tempo indeciso", de Javier Marías.
O que se passa mais comumente em outros países – tão apaixonados pelo futebol quanto o Brasil, ou até mais – é que autores de prestígio não se furtam a escrever amiúde sobre o esporte na imprensa, alguns deles assinando colunas semanais. São os casos do já citado Javier Marías, do falecido Manuel Vázquez Montalbán, de Enrique Vila-Matas, na Espanha; do mexicano Juan Villoro, cuja coletânea de artigos Dios es redondo (que grande título, hein?) merece urgente tradução entre nós; do inglês Nick "Arsenal" Hornby, entre outros.
Nestas plagas baldias, em que pese a categoria de cronistas específicos de futebol (Mario Filho, Nelson Rodrigues, João Saldanha, Armando Nogueira e, honrando as cores da rapaziada de hoje, Xico Sá), há a contribuição ocasional de um Verissimo, de um Dapieve, de um Ruy Castro, de um João Ubaldo. Geralmente são pitacos brilhantes, mas pitacos poucos. Exceção à regra, o nome de José Lins do Rego, que foi romancista e colunista diário de futebol, não necessariamente nessa ordem. Mas Zé Lins era mais cronista doente do Flamengo.
No departamento de ensaios sobre futebol, onde antes vivia solitário O negro no futebol brasileiro, de Mario Filho – que muitos têm e leem como um romance devido à riqueza de histórias, personagens e principalmente ao estilo admirável do autor – surgiram boas novidades: Footballmania: uma história social do futebol no Rio de Janeiro (1902-1938), de Leonardo Affonso de M. Pereira; A dança dos deuses: futebol, sociedade, cultura, de Hilário Franco Júnior; Veneno remédio: o futebol e o Brasil, de José Miguel Wisnik. De biografias, há o modelo Estrela solitária: um brasileiro chamado Garrincha, por Ruy Castro. Na simpática coleção Camisa 13, em que a trajetória de grandes clubes é contada por torcedores não só ilustres mas sobretudo que manjam do assunto, o destaque é Botafogo: entre o céu e a glória, de Sérgio Augusto.
Eis agora um escritor – que quase se tornou jogador profissional – a lançar um livro no qual embaraça as linhas que ligam futebol e literatura. Passe de letra, de Flávio Carneiro, reúne crônicas e artigos publicados, de 2007 a 2008, no jornal literário Rascunho, do Paraná. A epígrafe é do goleiro Albert Camus: "O conhecimento da alma humana passa por um campo de futebol".
No texto de abertura, estamos no início dos anos 70, em Goiânia, mais especificamente num bairro chamado Fama, onde morava um certo Fausto, ex-jogador do Vila Nova, ponta-direita de chute fortíssimo. Ele resolveu criar um time de futebol com os meninos do bairro e arredores, o Selefama Esporte Clube. Entre "os garotos mirrados, alguns passando fome, que nunca tinham calçado uma chuteira na vida", estava o nosso Flávio Carneiro, que era mais da classe média e acabou sendo o dono da camisa 7: "Sem dúvida um dos maiores orgulhos da minha vida". Pois o Selefama levantou, na frente de equipes mais poderosas e estruturadas como Vila Nova, Goiás, Goiânia e Atlético-GO, a taça de campeão goiano de tampinhas (categoria até 12 anos) em 1973.
Com tal incentivo, Flávio seguiu firme na ponta, apesar de algumas desilusões – o dia em que não pôde tirar uma foto com Pelé certamente a maior delas – até receber o convite, em 1980, para ser jogador de futebol profissional, atuando pelo Guarani, de Campinas, que dois anos antes tinha sido campeão brasileiro. Mas, quase ao mesmo tempo, ganhou um importante concurso de contos. Precisava decidir entre uma coisa e outra, e ser rápido. Venceu o sonho de ser escritor, e ele foi fazer vestibular para letras no Rio.
Passe de letra é obviamente o livro de um escritor que sabe cobrar escanteio, e não o de um ex-jogador que resolve contar suas experiências. Autor dos romances O campeonato e A confissão, além dos ensaios de No país do presente, especificamente sobre futebol Carneiro escreveu a novela juvenil Prezado Ronaldo, o conto "Penalidade máxima", e o roteiro de um curta-metragem, A noite do Capitão. Na coletânea, uniu reminiscências a sacadas, como a de comparar Garrincha ao lirismo e à simplicidade da poesia de Drummond ou Bandeira. Em textos curiosos, que vão agradar ao torcedor-leitor, revela as manias e superstições de colegas (o tricolor Marcelo Moutinho, o rubro-negro Milton Hatoum, o alvinegro Fernando Molica, entre outros). Belo gol.
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